Por observação da realidade e mais um conjunto de estudos sobre o tema, sabe-se que a Transformação Digital não se baseia apenas em investimento em tecnologia, mas fundamentalmente em mudanças na cultura organizacional. Exatamente esse aspecto que torna este processo tão complexo e desafiante, pois diz respeito a padrões de comportamento das pessoas nas organizações.
É sabido que mudanças de comportamento não ocorrem sem mudança de percepção e de mentalidade. Entender e atuar nesse aspecto definirá o sucesso ou fracasso da Transformação Digital ou, pelo menos, a velocidade em que isso acontecerá. Mas não basta atingi-la, é preciso que ela se torne perene e isso não acontece sem uma cultura consistente.
“Organizações que veem a cultura como um fator de diferenciação e fonte de vantagem competitiva mantêm um senso de comunidade melhor, respondem mais adequadamente às necessidades dos clientes, inovam com maior grau de sucesso e entregam resultados de negócios mais consistentes.” — Bhushan SethiLíder Global Adjunto de Pessoas e Organização na PwC.
Pilares da transformação organizacional
Transformações digitais podem ser caracterizadas por acionar ao menos uma das quatro alavancas-chave de valor a seguir:
a) modelos de negócio (novas formas de operar e novos modelos econômicos);
b) conectividade (engajamento em tempo real);
c) processos (foco na experiência do cliente, automação e agilidade) e
d) analytics (tomada de decisão e cultura de dados).
No entanto, para capturar o valor criado por essas alavancas, é necessário associá-las a um conjunto de melhores práticas de gestão que abrangem quatro dimensões fundamentais: Estratégia, Capacidades, Organização e Cultura.
Com o objetivo de entender o efeito do processo de digitalização no Brasil, a McKinsey realizou um estudo com 124 empresas de grande e médio portes em diversos setores para mensurar a maturidade digital delas.
Para tanto, utilizou-se a ferramenta Analytics & Digital Quotient (A&DQ), que avalia 22 práticas de gestão críticas para o sucesso da transformação digital e captura de resultado financeiro, distribuídas entre as quatro dimensões acima mencionadas. A ferramenta atribui uma pontuação que permite conduzir um benchmarking entre empresas pares e líderes em âmbito global.
Segundo resultados do estudo, grande parte das empresas tem consciência das mudanças que acarretam uma cultura digital. No entanto, a agenda de transformação digital muitas vezes se depara com hábitos antigos e iniciativas que visam buscar resultado financeiro imediato, causando conflitos e eventuais faltas de alinhamento entre as áreas funcionais, o que desestimula investimentos na mudança de mentalidades e comportamentos, porque demandam maior tempo para apresentar retornos financeiros.
As empresas entrevistadas reconhecem a importância de ter uma cultura voltada à inovação e à tomada de riscos. Entretanto, na maioria das vezes, os riscos tolerados são somente aqueles de baixo investimento. A maior parte das empresas ainda não compreende a importância da cultura de teste e aprendizado, prática que viabiliza a implementação de ajustes de maneira rápida para a captura de valor e, a relação disso com a aversão a riscos. Como resultado, as empresas líderes no Brasil tiveram sua menor pontuação na prática de teste e aprendizado da dimensão de Cultura.
Obstáculos culturais para a inovação no Brasil
Essa mudança de mentalidade necessária às empresas brasileiras é um grande desafio por estar inserida na cultura brasileira na qual, segundo estudos realizados por Geert Hofstede — que define a cultura como “a programação coletiva da mente que distingue um grupo de outro” —, a hierarquia deve ser respeitada, a desigualdade entre as pessoas é aceitável e quem detém o poder pode ter mais benefícios do que os outros.
Para o quesito individualismo, as pessoas dão um forte valor aos grupos e às relações pessoais, o que às vezes gera uma tendência ao nepotismo. A sociedade brasileira é, ao mesmo tempo, competitiva, mas também dá valor ao bem-estar. Assim como na maioria dos países latino-americanos, o Brasil tem uma grande aversão à incerteza e, por conta disso, as pessoas tendem a criar muitas regras e sistemas jurídicos com a finalidade de obter mais estrutura.
A literatura sobre cultura é muito vasta e requer boa capacidade de abstração dada a complexidade do tema. Uma definição reconhecida pelos estudiosos é a de Edgar Schein, renomado professor do MIT, que define cultura como “o jeito que a organização faz as coisas acontecerem”, e que é composta por três níveis: artefatos (todos os elementos que representam a cultura da empresa); normas e valores (regras escritas ou não que definem o que é esperado das pessoas); e crenças e pressupostos básicos (regras veladas que existem sem o conhecimento consciente de seus membros).
No contexto de uma Transformação Digital, a mudança cultural envolve alguns elementos críticos, tais como: agilidade, teste e aprendizado, experimentação, colaboração interna (equipes multifuncionais altamente comprometidas que colaboram com eficácia no desenho e na implementação de soluções de digital e analytics), tomada de decisão baseada em dados, orientação externa — isto é, entendimento aprofundado do mercado competitivo e flexibilidade na busca por soluções e parcerias externas quando se trata de promover a capacitação em digital e analytics na empresa e/ou para atividades não essenciais. É nesse ambiente que o cliente está na alma e na ação, que “customer centricity” deixa de ser apenas discurso e passa a ser o cerne de todo o processo de transformação.
Sandro Magaldi e José Salibi Neto afirmam que “a principal função da cultura é garantir a coesão necessária perante todos os agentes organizacionais, assegurando seu alinhamento com um conjunto de crenças e normas definido por aquele sistema (…). Ela contribui decisivamente para a estabilidade da organização ao definir os parâmetros e os modelos requeridos naquele ambiente, permitindo que as pessoas se comuniquem, coordenem seus esforços e definam os membros que se adaptem a esse sistema ou não”.
Se a empresa deseja usar a cultura como vantagem competitiva, precisa avaliar como ela ajuda ou prejudica sua capacidade de gerar resultados de negócio. Depois, identificar quais características e comportamentos precisam evoluir para melhor apoiar seus objetivos estratégicos.
Em seguida, gerenciar a cultura de forma proativa, o que, provavelmente, envolverá a criação de novos recursos para garantir a utilização de todos os facilitadores de cultura relevantes — formais e informais — para a sua organização, tais como: -O exemplo vem de cima; – tecnologias e ferramentas; – incentivo, remuneração e benefícios; -desenvolvimento e treinamento; – comunicações formais; – redes profissionais; redes de engajamento; – feedback coletado e aplicado; – sinais visíveis vindos das lideranças.
Alguns destes facilitadores são citados em outros estudos, tais como, os quatro elementos do chamado “Modelo de influência”, citados a seguir, como essenciais para consolidar as mudanças que precisam ser efetivadas: 1) role modeling (refere-se à forma como a liderança serve de exemplo a ser seguido); 2) criação uma história da transformação e comunicando-a com frequência; 3) desenvolvimento de talentos e habilidades; e 4) mecanismos de reforço (estruturas, sistemas, processos e incentivos à estratégia).
Lacunas entre liderança e percepções organizacionais
Para a Pesquisa Global de Cultura Organizacional 2021 foram entrevistados 3.200 profissionais e lideranças em todo o mundo. A maioria (67%) diz que a cultura é mais importante do que a estratégia ou as operações. Mas nem todos estão de acordo com a cultura vigente.
Os dados mostram uma lacuna cada vez maior entre o que as lideranças dizem sobre cultura (especialmente diversidade, equidade e inclusão — DEI) e o que as pessoas da organização vivenciam. Conhecendo a importância da diversidade para o processo de inovação e mudanças culturais, a menos que se aborde a questão e que os valores DEI sejam genuinamente incorporados à cultura, uma organização terá que se esforçar para atrair e reter o talento de que precisa.
Muitos profissionais sentem que seus locais de trabalho não são tão inclusivos quanto as lideranças pensam. No cerne dessa incompatibilidade, está a questão da autenticidade, de poder ser quem verdadeiramente é, o que exige alto grau de segurança psicológica.
Isso se constrói com relações de confiança. Num ambiente cada vez mais digital como atualmente, é mais difícil construir confiança: falta o “olho no olho”, a leitura da linguagem do corpo (parcial nas telas), de viver o subjetivo e profundo das relações, de encarar os conflitos, dentre outros aspectos que impactam negativamente a construção de relações mais autênticas e consistentes.
Além do mais, para se construir confiança, é preciso ser transparente e estimular a participação efetiva dos indivíduos, praticar uma abordagem que ajude a desenvolver habilidades e aplicá-las imediatamente.
A primeira edição do Índice Transformação Digital Brasil (ITDBr), levantamento que apresenta uma metodologia exclusiva para consolidar os diversos aspectos da Transformação Digital em um indicador inédito e mensurável, ficou em 3,3 — pouco acima da metade da escala, que vai de 1 a 6. O resultado indica uma maturidade ainda baixa para a Transformação Digital. As indústrias mais avançadas são as de Serviços Financeiros (4,1). A dimensão pessoas e cultura com índice de 3,4, representa o principal obstáculo para o progresso na agenda de transformação digital.
Entre os CEOs cujas empresas adotaram amplamente a IA generativa, por exemplo, 84% acreditam que a tecnologia aumentará a eficiência do tempo de trabalho dos seus funcionários em 2024. Os funcionários parecem menos convencidos — 43% dos trabalhadores no Brasil e 31% no mundo que responderam à Pesquisa Hopes and Fears 2023 da PwC esperam que a IA generativa aumente sua produtividade e eficiência no trabalho nos próximos cinco anos.
Essas revelações reforçam a necessidade de os CEOs envolverem seus funcionários no processo de implementação da IA generativa. Transparência, senso de propósito e planos e decisões confiáveis relacionados à IA são fatores que podem ajudar os funcionários que desconfiam da tecnologia a se sentirem mais confortáveis em experimentá-la — e em inovar.
Em última análise, os CEOs devem aceitar um novo desafio de sua função: compreender, explicar e gerenciar as tensões inevitáveis entre os cortes de empregos de curto prazo e o potencial de criação de empregos no longo prazo que a IA proporciona. CEOs e outros executivos podem fazer muito mais para enfrentar ineficiências e superar barreiras, mas eles não podem fazer tudo. É crucial alinhar as prioridades de mudança entre líderes e funcionários, além de fomentar uma cultura de confiança para que os funcionários se sintam seguros em propor maneiras mais eficientes de trabalho.