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Já se utiliza Inteligência Artificial (IA) para acelerar o processo de desenvolvimento de novos medicamentos, e a cooperação de autoridades regulatórias encurta o processo de aprovação. Por meio da farmacogenética, é possível identificar a receptividade do corpo humano para determinadas moléculas, viabilizando melhores resultados clínicos para os pacientes. Terapias avançadas que utilizam a edição do DNA são o auge da personalização dos tratamentos. As pesquisas e investimentos na área estão em ebulição, e a tecnologia tem cumprido seu papel na saúde. No entanto, os avanços na indústria farmacêutica ainda são ofuscados por um desafio antigo: tornar a inovação real, ou seja, garantir que ela chegue a quem precisa.
“A inovação na saúde é um processo longo. Muitas vezes ela acontece unindo parte do que vários cientistas estão fazendo. Ela transforma o que alguém fez lá atrás e segue mais adiante. Podem ser necessárias cooperação, harmonização de regras e utilização das melhores capacidades de cada país para se chegar a uma inovação”, avalia o presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), Renato Porto.
Segundo o executivo, a máxima eficiência de um ecossistema de inovação no setor farmacêutico ficou evidente durante a pandemia de Covid-19, quando esforços de cientistas do mundo inteiro permitiram o desenvolvimento de uma vacina em menos de um ano, quando a média de tempo para esse tipo de tecnologia é de oito anos. Esse cenário ideal de fato não é a realidade observada mundialmente, mas a tentativa de se aproximar dele deveria ser uma meta.
O caminho de toda novidade começa com pesquisa e desenvolvimento (P&D) e, nesse quesito, estudos apontam aquecimento. Os investimentos em P&D no setor farmacêutico se mantêm altos, segundo a pesquisa “Tendências globais em Pesquisa & Desenvolvimento: Atividade, Produtividade e Habilitadores”, realizada pelo IQVIA Institute for Human Data Science, em 2023 foram lançadas globalmente 69 novas substâncias ativas, indicando um aumento de 10% em relação a 2022, representando também um retorno aos níveis pré-COVIDCovid-19. Entre as áreas com crescente participação no lançamento de novas tecnologias estão oncologia, neurologia e imunologia, que respondem por 56% dos lançamentos nos últimos cinco anos. O levantamento aponta ainda que a taxa de sucesso composta do pipeline saltou em 2023 para 10,8% em todas as áreas terapêuticas, impulsionada por aumentos na Fase I, Fase III e sucesso regulatório. Em 2022 esse índice estava em apenas 5,9%.
A fase de pesquisa é uma das mais importantes para o desenvolvimento de novas terapias, de maneira que a estimativa é que essa etapa acabe respondendo por quase 60% do investimento total dispendido para a criação de um novo medicamento. O rito que se segue obedece a uma ordem começando por pesquisas pré-clínicas e, a partir desses dados, o início da testagem em humanos com estudos clínicos divididos em fases para avaliar administração, doses, segurança e eficácia. Todas as etapas são submetidas às autoridades regulatórias para verificação e concessão de registro de um produto farmacêutico. Historicamente, as empresas submeteram suas inovações às agências regulatórias após, ou em vias de finalizar a fase III de pesquisa clínica. Porém, avanços com novas terapias durante o período de emergência em saúde incitaram questionamentos sobre agilizar esse processo. No Brasil esse movimento ocorreu fortemente na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), propiciando incentivo à inovação em saúde, tal qual preconiza a Organização Mundial da Saúde (OMS), como destaca a diretora da Anvisa responsável pela área de medicamentos, Meiruze Freitas.
“Desde 2015, várias autoridades internacionais discutem vias aceleradas para registro, especialmente de medicamentos que são desenvolvidos em contextos com poucas estratégias curativas ou para doenças de alta mortalidade e morbidade. As agências regulatórias – no Canadá, nos Estados Unidos, na Europa e nós no Brasil também – criaram vias aceleradas para registrar produtos em desenvolvimento e com as demandas da pandemia isso se consolidou. Antes, chegava para a Anvisa o produto que já estava quase na sua fase final, em estudo clínico fase II ou fase III. Hoje, as autoridades regulatórias começam a ter conhecimento cada vez mais cedo sobre segurança e eficácia. Às vezes, são apresentados para a autoridade regulatória dados na fase II. Quase todas as agências que têm padrões semelhantes já conseguem registrar um produto quando o estudo clínico de fase II está concluído e um fase III está em andamento. Quando se trata de uma doença de alta mortalidade e morbidade, é possível autorizar e acompanhar esse produto. Isso se tornou muito comum com o avanço das terapias avançadas”, explica.
Cooperação internacional
Atualizar as práticas regulatórias à velocidade dos avanços tecnológicos e do conhecimento científico para garantir que as inovações cheguem a quem precisa tem sido um desafio global, de forma que nos últimos anos essa discussão acabou aproximando as autoridades que compõem o cenário internacional, possibilitando avaliações conjuntas. Um exemplo disso ocorre neste momento, com o pedido de registro da vacina contra o vírus Chikungunya. A análise está sendo feita de maneira conjunta pela Anvisa e pela Agência Europeia de Medicamentos (European Medicines Agency – EMA). No Brasil, o pedido foi submetido pelo Instituto Butantan – parceiro para o desenvolvimento da vacina com a empresa de biotecnologia franco-austríaca Valneva – que submeteu o produto para a apreciação da EMA.
A análise conjunta é respaldada na iniciativa OPEN (Opening Procedures at EMA to non-EU Authorities), que estipula as regras para análises simultâneas por dois ou mais reguladores: as agências participantes permanecem independentes enquanto compartilham informações, conhecimentos e abordagens durante a avaliação. A intenção é que, com mais elementos disponíveis para todos, as análises ocorram de maneira mais robusta, transparente e ágil, contribuindo para acelerar o acesso a novos medicamentos.
“Esse movimento das autoridades regulatórias de se aproximarem, discutirem e estarem mais alinhadas do ponto de vista dos requerimentos técnicos é um reflexo da pandemia, porque precisávamos de muita informação e essa informação tinha que ser full time. E então, nós avançamos e não regredimos mais, especialmente utilizando dados de confiança regulatória, que chamamos de reliance. Os países estão se aproximando e quem ganha com isso é a população”, avalia a diretora da Anvisa.
O reliance ou Confiança Regulatória foi aprovado pela diretoria colegiada da Anvisa no início de 2024, dentro de uma instrução normativa que estabelece critérios para aproveitar avaliações de Autoridades Reguladoras Estrangeiras Equivalentes (AREEs). Com base na normativa, análises de registro e pós-registro de medicamentos, vacinas e produtos biológicos que já tenham sido aprovados por reguladores estrangeiros que integrem o AREEs passam por um processo simplificado, sem prejuízo à integridade e à qualidade da avaliação, sendo ainda necessária a submissão completa de todos os dados necessários e documentos em conformidade com a legislação brasileira.
Hoje, o Brasil, por meio da Anvisa, consegue fazer avaliações de novas tecnologias em um período alinhado com as demais agências regulatórias, em média de 240 a 360 dias. Meiruze Freitas destaca ainda que em alguns momentos o país chegou a ser pioneiro na aprovação de uma indicação e que, quando as análises são realizadas em conjunto por mais de um regulador, esse prazo consegue ser reduzido em pelo menos 30%.
Avanços até a metade do caminho
O registro da Anvisa é apenas o primeiro passo para que um novo medicamento seja disponibilizado. Fechar o ciclo da inovação requer ainda passar por outras etapas, que acrescentam mais tempo ao processo decisório. A primeira, para que o produto possa ser disponibilizado no mercado, é a de definição de preços, feita pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED). Para disponibilização no Sistema Único de Saúde (SUS) ou no Sistema de Saúde Suplementar, as novas tecnologias precisam ainda passar por uma avaliação que considera não apenas o benefício clínico e a segurança da inovação, mas também sua relação de custo-efetividade e seu impacto orçamentário no sistema. No SUS, a decisão do Ministério da Saúde é baseada em um parecer construído pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec); no Sistema de Saúde Suplementar, a decisão cabe à diretoria colegiada da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), após a avaliação de um grupo chamado Cosaúde.
Para o presidente da Interfarma, Renato Porto, ao contrário do movimento que ocorreu na Anvisa, essa última etapa da inovação ainda carece de uma atualização no Brasil. “A incorporação no Brasil é aquém do que é feito em outros países. Ainda leva em consideração fatores para tomada de decisão que não são tão transparentes e que são ultrapassados. Por exemplo, estamos falando de avaliação de custo-efetividade que não faz mais nenhum sentido, que é superado em vários países do mundo. Nós temos hoje avaliações multicritério e multianálises, nós temos várias possibilidades de aprimoramento dos processos da Conitec e, fora isso, o Ministério da Saúde ainda leva muitos meses para comprar o produto. Então, há uma grande questão: como fazemos esse processo hoje no Brasil ser mais eficiente?”, indaga.
O executivo é ainda mais provocativo no questionamento, trazendo como exemplo o caso de um produto para uma doença rara que foi incorporado apesar de ultrapassar o limiar de custo-efetividade definido pela Conitec, pois foi considerado uma inovação sem precedentes com benefício não proporcionado por nenhum outro medicamento.
“Para ele ser incorporado, deveria estar dentro de três PIBs per capita, mas a Conitec foi favorável, e o Ministério da Saúde comprou o produto, mesmo tendo uma avaliação de custo-efetividade de 15 PIBs per capita, quer dizer, na hora que se vê de fato uma grande inovação e uma mudança total no curso de uma doença – e nesse caso é o primeiro medicamento para isso – não há como se negar. Esse exemplo mostra que esse modelo está superado”, argumenta.
Meiruze Freitas reconhece que ainda existe um caminho árduo a ser percorrido para garantir que inovações em saúde cheguem de fato a quem precisa. “A finalidade do registro tem que ser o acesso. Não podemos pensar em avaliar e registrar um produto para ser um diploma na parede. Claro, essas novas tecnologias são de alto custo, impactam a realidade do nosso país que é desigual, mas o ideal é que o acesso seja mais equânime e não só para alguns ou só para aqueles que têm condição de acionar o Judiciário. Talvez ainda não estejamos todos tão alinhados e tenhamos etapas para vencer, mas eu acho que o movimento que a Anvisa fez foi a largada”, avalia a diretora.
Seguir inovando é preciso
Em entrevista à MIT Technology Review Brasil, Andrew Powaleny, diretor sênior de Relações Públicas da PhRMA, a principal associação comercial da indústria farmacêutica nos Estados Unidos, reafirma que a ampliação do acesso a novos medicamentos é um desafio global.
“O acesso é, muitas vezes, ditado pelo prestador dos cuidados de saúde. Aqui nos Estados Unidos são as companhias de seguro médico. Se você tem seguro de saúde, ele precisa prover a cobertura, mas os desafios que vemos é que muitas vezes os seguros negam o acesso, o cuidado. E tem ainda questionamentos sobre o acesso para comunidades carentes. É realmente desafiador. Se você tem uma doença grave, a última coisa com a qual você deveria se preocupar é se você vai ter ou não acesso. O paciente deveria estar apenas focado em se tratar, no seu bem-estar”, afirma Powaleny.
Segundo o executivo, inovar na indústria farmacêutica nunca foi tarefa fácil, pois se trata de um processo longo e complexo, com duração média de dez a 15 anos e custos aproximados de U$2,6 bilhões para que uma ideia vire um medicamento aprovado e utilizado por um paciente. Além disso, menos de 10% das inovações conseguem ultrapassar a fase I de pesquisa clínica, relata Powaleny. Apesar das dificuldades, as empresas seguem investindo, porque é a única forma de se conseguir chegar a um resultado relevante para os pacientes.
“O que nós vimos durante a pandemia, quando a indústria trabalhou em conjunto, inclusive deixando de lado a competição entre empresas para trazer de maneira ágil vacinas e medicamentos, foi o melhor momento do setor. Esse período resumiu o que é essa indústria: focada em promover esperança, tratamento e cura para pacientes. É necessário inovar porque os pacientes contam com isso”, finaliza.