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A 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (COP30) coloca o Brasil no centro de um debate que amadureceu rapidamente. Em Belém, o país não será julgado apenas por suas metas climáticas, mas pela capacidade de integrar ambição e realismo em um sistema elétrico que precisa garantir estabilidade em meio a um cenário global mais volátil.
A discussão internacional avança para um novo eixo: segurança energética, confiabilidade e resiliência tornaram-se tão determinantes quanto a redução de emissões. E, diante desse novo equilíbrio, o Brasil terá de demonstrar não apenas visão estratégica, mas também coerência operacional.
Para isso, é preciso reconhecer que transições energéticas não se dão por rupturas súbitas. Como evidenciado por Daniel Yergin e por décadas de pesquisa histórica, sistemas energéticos evoluem lentamente, por adição, não por substituição abrupta.
Essa leitura é reforçada por Ernest Moniz, professor emérito do MIT e fundador do MIT Energy Initiative, que afirma que a transição energética é “gradual por natureza” e depende de infraestrutura, inovação e segurança energética em ciclos longos. Moniz sintetiza o que define a década atual: a humanidade está avançando por camadas, não saltando entre eras energéticas.
A matriz mais limpa do mundo e suas fragilidades
No caso brasileiro, essa lógica é particularmente evidente. O país abriga uma das matrizes elétricas mais renováveis do mundo (cerca de 90% segundo a Empresa de Pesquisa Energética – EPE), mas depende fortemente da hidrologia, responsável por mais de 60% da geração de energia. A estiagem de 2021 expôs essa vulnerabilidade ao exigir a operação de mais de 20 gigawatts de térmicas fósseis, elevando tarifas e emissões. A matriz é exemplar, mas frágil diante de eventos extremos, e a COP30 refletirá essa tensão estrutural: como manter a confiabilidade enquanto se amplia a participação de novas tecnologias?
Com a conferência já em curso, fica mais claro que a transição energética não é linear nem baseada em substituições súbitas. O foco, então, volta à segurança de suprimento e, no Brasil, isso implica uma rota híbrida, em que renováveis em expansão convivem com ativos firmes, infraestrutura existente e serviços digitais, integrados em um sistema baixo em carbono e preparado para choques climáticos e picos de demanda.
Essa visão se alinha à ideia de energia multipotencial, que ganha espaço entre empresas brasileiras do setor, como a Energisa. Lideranças da companhia entendem a transição como um exercício de multipotencialidade e resiliência, combinando distribuição, geração centralizada e distribuída, gás natural, biogás, digitalização de redes e novos modelos de negócio, usando a solidez construída em décadas como base para testar inovações e construir um sistema elétrico confiável e transformador.
É nesse ponto que a segurança energética ganha centralidade. Um sistema moderno precisa funcionar diariamente, independentemente do regime de chuvas, de picos inesperados de demanda ou das flutuações nas cadeias globais. A resiliência, ou seja, a capacidade de resistir a choques e continuar operando, torna-se tão crítica quanto a expansão de renováveis. Para países continentais, com indústria crescente e digitalização acelerada, a segurança energética é a base da economia.
Nesse cenário, o gás natural tem papel decisivo. Longe de ser um recurso transitório, ele é o principal parceiro firme das renováveis, oferecendo flexibilidade, rapidez, escala e menor intensidade de carbono do que diesel e carvão.
A Agência Internacional de Energia (IEA) confirma que o gás permanecerá estrutural na transição até que armazenamento, hidrogênio, redes inteligentes alcancem maturidade plena e viabilidade financeira de forma escalável. A discussão relevante não é eliminar térmicas, mas como utilizá-las com inteligência: com metas de intensidade de carbono, substituição de combustíveis mais poluentes, contratos flexíveis e infraestrutura preparada para biometano e hidrogênio.
O debate sobre baterias também precisa ser ancorado na realidade tecnológica. Armazenamento é importante, mas hoje resolve apenas parte da equação: cobre minutos e horas, não semanas ou períodos sazonais. A professora Jessika Trancik, do MIT Institute for Data, Systems, and Society, demonstra em seus estudos que, embora os custos das baterias tenham caído vertiginosamente, elas ainda não substituem fontes firmes em larga escala e permanecem limitadas para lidar com longos períodos de baixa renovável.
Essa limitação é agravada pelo fato de que a transição energética depende de cadeias globais altamente concentradas. A China controla aproximadamente 90% da capacidade global de materiais de cátodo e mais de 97% dos materiais de ânodo usados em baterias. Em minerais críticos, três países respondem por mais de 90% do refino global, especialmente de terras raras.
A professora Elsa Olivetti, do MIT terials Research Laboratory, alerta que essa concentração cria riscos sistêmicos e pode desacelerar a transição caso ocorram choques geopolíticos, gargalos industriais ou disputas comerciais.
Nesse cenário de incerteza, a digitalização emerge como novo vetor energético. A IEA estima que o consumo de energia por data centers pode dobrar e alcançar 945 terawatts-hora até 2030, impulsionado pela aceleração da inteligência artificial.
No Brasil, essa nova demanda pode se transformar em oportunidade, aproveitando a disponibilidade renovável que frequentemente é desperdiçada. O programa Redata, que vincula incentivos fiscais ao uso de energia limpa, eficiência hídrica e investimento em pesquisa e desenvolvimento, antecipa esse futuro.
A era da adição energética
Mas a transição também é social. Daniele Salomão, vice-presidente de Gente, Gestão e Sustentabilidade do Grupo Energisa, afirma que “a multipotencialidade precisa sair do discurso e entrar na operação por três frentes: descentralização inteligente, inovação regulatória e inclusão territorial.” Essa visão se materializa em iniciativas que levam energia a regiões remotas.
O projeto Ilumina Pantanal implantou kits solares off-grid com baterias em 2.167 unidades, distribuídas por 90 mil quilômetros quadrados. A microrrede da Vila Restauração, no Acre, converteu três horas de energia diária em fornecimento contínuo, graças a 325 kW solares e 829 kWh em baterias.
As Virtual Power Plants (VPPs), no Tocantins e na Paraíba, coordenam microgerações distribuídas em quatro mil unidades, com expansão prevista para 20 mil. Para Daniele, o objetivo é “integrar elétrons, moléculas e bytes”, promovendo estabilidade e inclusão onde o Estado e o mercado tradicional não chegam.
Esses projetos reforçam que hidrelétricas e térmicas continuarão sendo pilares de um sistema continental. As primeiras oferecem estabilidade de longo prazo; as segundas, resposta rápida e previsível. Em combinação com solar, eólica, biomassa, armazenamento e gás, elas formam um mosaico capaz de tornar o sistema brasileiro ao mesmo tempo limpo, robusto e competitivo.
A dimensão econômica também se transforma. Segundo o relatório World Energy Employment 2023, da IEA, empregos em tecnologias limpas já superam os ligados a combustíveis fósseis, totalizando mais de 35 milhões no mundo.
O Brasil, com sua matriz limpa e diversidade de recursos, pode transformar a transição em alavanca de reindustrialização verde, desde que conecte política energética, inovação e investimento.
Essa conexão exige realismo regulatório e maturidade na interpretação da agenda ESG. Pressões descoordenadas podem gerar volatilidade e comprometer investimentos. Hudson Mendonça, CEO do Energy Summit, afirma que “o Brasil está onde muitos países esperam chegar em uma década” e defende maior aproximação entre conhecimento acadêmico, mercado e políticas públicas para consolidar uma transformação sustentável e competitiva.
Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima, reconhece o potencial brasileiro, mas alerta que avanços podem ser comprometidos se a expansão de combustíveis fósseis superar o ritmo da descarbonização.
Diante disso, a COP30 tende a funcionar menos como vitrine de promessas e mais como auditoria da coerência entre números e narrativas. De um lado, o Relatório Síntese do Balanço Energético Nacional 2024 (EPE) mostra que as fontes renováveis responderam por 87,9% da geração elétrica brasileira em 2023, sinal de um sistema elétrico raro no mundo. De outro, o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG) indica que o país ainda opera em um patamar de emissões superior a 2,5 bilhões de toneladas brutas de CO₂ equivalente, com queda recente puxada principalmente pelo desmatamento menor e não por uma transformação estrutural da economia, como detalha o relatório “Emissões do Brasil têm a maior queda em 16 anos”, do Observatório do Clima.
A era da adição energética só faz sentido se esta realidade paradoxal for encarada: um sistema elétrico exemplar inserido em uma economia que ainda não desacoplou crescimento e emissões.
No plano global, a atualização de 2023 do relatório “Net Zero Roadmap: A Global Pathway to Keep the 1.5 °C Goal in Reach”, da Agência Internacional de Energia , estima que a participação de fontes de baixa emissão na geração elétrica precisa subir de 39%, em 2022, para 71%, em 2030, e chegar a 100%, em 2050. Isso significa que países como o Brasil, já bem acima da média em eletricidade, não ganham licença para expandir indefinidamente petróleo e térmicas, e sim a responsabilidade de redesenhar os papéis do gás natural, dos biocombustíveis, do armazenamento e do hidrogênio em um sistema que permaneça limpo e confiável. E o caminho pode ser pelo sol e pelos ventos: o estudo “The Future of Energy Storage: An Interdisciplinary MIT Study”, do MIT Energy Initiative, mostra que sistemas elétricos com alta participação de eólica e solar conseguem reduzir as emissões do setor em 97% a 99% em relação a 2005 até 2050, mantendo a confiabilidade, desde que haja alto investimento em armazenamento, transmissão e flexibilidade de demanda.
O que não pode ser ignorado é que essa disputa entre ambição e realidade também é econômica. O setor de energia vive uma mudança de perfil, com tecnologias limpas ganhando espaço e redesenhando o mercado de trabalho global. No Brasil, o desafio é transformar a abundância de fontes renováveis em motor de uma reindustrialização verde, com regras estáveis e maior integração entre ciência, mercado e políticas públicas. O recado para Belém é direto: ou o país alinha desenvolvimento e descarbonização de forma estratégica, ou continuará preso a avanços pontuais seguidos de retrocessos estruturais.



