Como preservar a urgência por inovar?
Inovação

Como preservar a urgência por inovar?

A ameaça da inércia implora por uma resposta à seguinte pergunta: o que a gestão precisa fazer para que a inovação aconteça, seja na crise ou em tempos de relativa calmaria?

Executivos que conduzem e acompanham incontáveis projetos de inovação em empresas de diversos tipos, no mundo todo, ao longo dos anos, em algum momento constatam algo que muitos líderes não arriscariam dizer em voz alta: a vocação para inovar é para poucos. Paradoxalmente, estes tomadores de decisão sabem que, se não fizerem isso, os negócios que comandam irão perecer.

Ao mesmo tempo, vimos a aceleração da Transformação Digital forçada pela Covid-19. O futuro de muitos negócios estava em risco. Consumidores demandaram mudança: se delivery não fosse uma opção em varejistas, essas empresas provavelmente perderiam vendas, e, da noite para o dia, as compras surgiram na nossa porta. Moveram-se mundos e fundos, e muitas organizações responderam às demandas por digitalização — o que é diferente de transformar-se de fato.

Passado o susto inicial da pandemia e o ajuste à nova realidade, as empresas não podem correr o risco de uma redução no ritmo da inovação. A falta de vocação para inovar está na raiz do problema: não raro, organizações não conseguem colocar novas ideias (criatividade) em prática (inovação), porque seus modelos de negócio, estruturas organizacionais e lideranças trazem enormes dificuldades na adoção de novas formas de pensar e fazer.

Para a inovação acontecer, de fato, é preciso que algumas perspectivas sejam consideradas: gestão, oferta, marketing, vendas e processos. O ambiente também precisa ser favorável à inovação. É impossível inovar em um ambiente avesso a riscos, ou onde falhar seja visto como um problema. Para inovar é preciso “gostar do risco” e fomentar uma cultura que em inglês é comumente chamada de fail forward, ou seja, falhar avançando.

A ameaça da inércia implora por uma resposta à seguinte pergunta: o que a gestão precisa fazer para que a inovação aconteça, seja na crise ou em tempos de relativa calmaria?

Uma aula de criatividade

Foto tirada por Marvio Portela – Key Biscayne FL

Logo no início de 2022, uma cena curiosa, que despertou reflexões sobre criatividade e a força propulsora da inovação, ganhou as manchetes dos jornais da Flórida, nos Estados Unidos. Era uma típica manhã de inverno em Key Biscayne, Flórida, e os frequentadores da praia se depararam com um barco, que tinha sido usado por imigrantes cubanos para chegar aos Estados Unidos.

Encontrar embarcações que chegam de Cuba é uma cena que as vezes acontece em algumas praias da Florida. Com complexidade variada, estes meios de transporte podem consistir em câmaras de pneus de caminhão, tábuas de madeira pregadas e outros materiais. Mas este barco em particular não era somente um improviso, e sim uma combinação de complexidade e simplicidade, uma aula de pensamento criativo.

Foto tirada por Marvio Portela – Key Biscayne FL

Feito de barris de petróleo, este barco tinha diversos detalhes surpreendentes, como o leme de vergalhões. O motor de um carro antigo — talvez um Lada, ou mesmo um Chevrolet Bel Air? — foi instalado para que a travessia fosse feita em menos de um dia, com todo o cuidado e maestria de quem sabia o que estava fazendo. Com um olhar mais atento, quem analisou esta obra certamente constatou que o barco era o próprio tanque, com gasolina armazenada nos barris, e tubos com buracos cumprindo a função de sistema de respiro para o combustível.

Foto tirada por Marvio Portela – Key Biscayne FL

O assunto ganhou as rodas de conversa do mundo corporativo de Miami, com muitos desejando conhecer — e contratar — a pessoa que construiu aquele barco. O caso reforça a ideia de que a inovação não só foi um ingrediente essencial daquele projeto, mas a motivação principal de uma luta por sobrevivência.

Pivotando para sobreviver

Usando como inspiração a embarcação que fez a travessia de Cuba até Miami, é razoável afirmar que o ambiente exerce uma influência significativa na capacidade de ideação das pessoas, assim como a habilidade de colocar estes projetos em prática. No caso do barco, uma entrega inovadora era extremamente necessária. Afinal, as vidas dos quatro ou seis passageiros, provavelmente família ou amigos, dependiam da qualidade do produto final.

Esta urgência de colocar ideias inéditas em prática para atender às necessidades de um público-alvo pode ser encontrada no ambiente de trabalho de startups bem-sucedidas. Não há outra opção: se estas empresas não trazem algo verdadeiramente disruptivo, ou têm a capacidade de pivotar — ou seja, mudar o curso do barco quando necessário e alterar sua proposta de valor — simplesmente não conseguem sobreviver.

Mas isso não se aplica somente às novas empresas de base tecnológica. Negócios ditos tradicionais também se beneficiam, e muito, da percepção da inovação enquanto requisito para a sobrevivência. Porém, esse entendimento precisa se traduzir em ações ao longo de ciclos, com atenção, energia e investimento constante.

A correção de rota da varejista norte-americana BestBuy é um exemplo de reviravolta orientada por um senso de necessidade impreterível. Em seu livro The Heart of Business: Leadership Principles for the Next Era of Capitalism, o ex-CEO da empresa Hubert Joly narra sua abordagem inovadora para combater o showrooming — prática em que consumidores vão até uma loja física para experimentar um produto e tirar dúvidas, para depois comprá-lo em um concorrente online (como a Amazon), ou físico (como as flagship stores da Apple ou Samsung).

Assim que se juntou à empresa, Joly adotou a estratégia mais óbvia, de sobreviver à base de cobrir o preço da competição online, para desencorajar a tal prática de showrooming, Apesar desta abordagem ter garantido a sobrevida imediata da empresa, uma ideia inédita colocada em prática se mostrou muito mais promissora. Fornecedores precisavam da varejista, e vice-versa. E se ao invés de competir, essas empresas colaborassem através de parcerias estratégicas?

Em sua primeira semana como CEO, Joly expôs sua ideia em uma entrevista a um jornal local, em um primeiro passo rumo a torná-la realidade. Não demorou muito para que a Samsung se interessasse pela proposta, inaugurando uma série de lojas dentro das unidades BestBuy, com produtos e experiências exclusivas. Outros fabricantes, como a Apple e a Sony, que salvou sua divisão de TVs com essa abordagem, seguiram o exemplo, bancando suas próprias lojas na varejista mesmo tendo suas próprias redes de pontos físicos.

Ao concretizar o que à época era uma ideia sem precedentes, Joly trouxe uma nova percepção para a BestBuy. “Nos tornamos parceiros das maiores empresas de tecnologia do mundo, em torno do nosso objetivo redefinido de enriquecer a vida das pessoas através de tecnologia”, diz Joly, que transformou a prática do showrooming em showcasing, com benefícios mútuos para ambas as partes.

Com uma nova liderança – Corie Barry, que atuou como CFO na gestão de Joly – a BestBuy continua enfrentando desafios, intensificados com a digitalização do consumo trazida pela Covid-19. A companhia agora busca focar no e-commerce, e ressignificou seus espaços físicos, transformando-os em centros de distribuição. Porém, a varejista entende que consumidores ainda vão buscar conselhos, dicas e a experiência do produto antes de comprar, e agora busca transportar esse conceito para o ambiente digital.

O papel da liderança

Se o plano atual da BestBuy vai dar certo, só o tempo dirá, mas uma coisa é certa: se a companhia não tivesse adotado uma abordagem criativa em meio à urgência por sobreviver, já teria submergido há muito tempo. Joly deixou a inquietude e a necessidade de busca por soluções inéditas como herança de sua gestão. Exemplos como este deixam marcas profundas em uma organização e contribuem para criar um senso de urgência.

No entanto, experiências bem-sucedidas no passado não criam profecias autorrealizáveis quando o assunto é inovação. O conforto trazido pelos louros conquistados também traz o risco de times que perdem a urgência da inovação de vista, em que gestores começam iniciativas e depois desaparecem, deixando o trabalho e a responsabilidade das entregas — quando acontecem — para os colegas, fornecedores ou consultores. Por outro lado, equipes que retém a urgência dos tempos de crise têm a liderança envolvida no processo, celebrando sucessos e lidando com fracassos, resolvendo problemas coletivamente. Imbuída de um senso de responsabilidade e urgência, a equipe não sente que a participação é opcional.

Entre os legados da urgência que a Covid-19 nos trouxe em relação à capacidade de inovar em qualquer circunstância, o envolvimento da liderança é o principal aprendizado para organizações de qualquer porte ou setor. É o que manda o sinal para equipes internas, externas e clientes que novas ideias produzirão resultados, e é o antídoto para a falta de vocação para inovar vista em tantas empresas. Necessidade e urgência tangibilizam a ideação, dissipando a inércia — e o movimento é crucial para a sobrevivência, desde que o mundo é mundo.

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Este artigo foi produzido por Marvio Portela, Vice-presidente sênior e gerente geral, EUA, América Latina e Caribe do SAS, e colunista da MIT Technology Review Brasil.

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