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Os cartórios têm origem na Suméria, antiga civilização situada onde hoje se localiza o Iraque e o Kuwait, à qual também é atribuída a invenção da escrita. O sistema cartorial rudimentar da Suméria consistia no serviço de autenticação em que os escribas conferiam “fé pública” a documentos. Foi apenas na Roma antiga que as práticas notarias se desenvolveram, resultando em um sistema semelhante à estrutura e aos serviços atuais, trazidos pelos portugueses ao Brasil.
Dos tempos da Sumária até hoje, os cartórios passaram por grandes evoluções na forma de trabalho, atribuições e métodos de registro de seus atos. No entanto, o ano de 2020 promete ser o marco divisório em relação à efetiva entrada dos cartórios brasileiros no mundo digital.
O impacto da pandemia
O Colégio Notarial do Brasil, em parceria com o Conselho Nacional de Justiça, vinha trabalhando há dois anos no desenvolvimento de uma plataforma digital própria que conferisse ao ato praticado pela via eletrônica a mesma segurança e eficácia do ato praticado pela via física tradicional. A pandemia do coronavírus gerou um verdadeiro apagão das instalações físicas dos cartórios, impossibilitando, no início, que os notários desempenhassem seu trabalho da forma física, acelerando a necessidade da introdução de métodos digitais para realização dos atos notariais.
Assim, acelerado pela pandemia, em 26 maio de 2020 foi publicado o Provimento nº 100 do Conselho Nacional de Justiça, o qual regulamentou e introduziu a plataforma “e-Notariado”, possibilitando aos cartórios de notas realizarem atos notariais eletrônicos, tal como escrituras e procurações. Para a realização de tais atos, o cartório de notas deverá estar habilitado na plataforma do e-Notariado e observar os seguintes requisitos:
1) videoconferência com as partes para captação do consentimento em relação aos termos do ato jurídico;
2) concordância expressada pelas partes com os termos do ato notarial eletrônico;
3) assinatura digital pelas partes por meio do e-Notariado;
4) assinatura do Tabelião de Notas com a utilização do certificado digital ICP-Brasil;
5) uso de formatos de documentos de longa duração com assinatura digital.
Notarchain
De acordo com o Colégio Notarial do Brasil, parte da plataforma do e-Notariado roda em uma rede Blockchain própria — denominada Nortachain —, na qual os cartórios de notas atuariam como “nós” da rede para validar as transações. Trata-se, portanto, de uma rede Blockchain privada, diferentemente da utilizada pelo Bitcoin, uma vez que apenas pessoas previamente autorizadas, no caso os cartórios de notas habilitados, poderão realizar os registros na rede.
De acordo com as informações divulgadas pelo Colégio Notarial do Brasil em entrevista recente, a utilização da tecnologia Blockchain pelos cartórios visa aumentar os níveis de segurança. A utilização da tecnologia por um setor fortemente regulado e cujas principais alicerces estão pautados na segurança, demonstra, na prática, o potencial da utilização da tecnologia Blockchain por outros setores para além dos criptoativos.
Uso da tecnologia Blockchain
Apesar do pioneirismo do e-Notariado com utilização da Nortachain, não é de hoje que governos estudam a utilização do Blockchain para melhoria e, em alguns casos, até substituição dos cartórios mediante emprego da tecnologia, sobretudo no que tange aos cartórios de registro de imóveis.
A origem da tecnologia Blockchain está intimamente ligada ao Bitcoin, afinal, sua mecânica e características foram apresentadas ao mundo justamente no paper do Bitcoin. Assim, trata-se de sistema desenvolvido para reduzir — em alguns casos até eliminar — os intermediários das cadeias, de forma a permitir uma interação mais direta e, consequentemente, menos onerosa.
Em decorrência de sua natureza, diversas iniciativas pelo mundo visam o emprego da tecnologia para, inclusive, substituir alguns serviços prestados pelos cartórios, tal como a autenticação de documentos e o registro imobiliário. Nesse sentido, países como os Estados Unidos, China, México, Índia e Suécia (está última desenvolve projeto piloto desde 2017), estão estudando a substituição do atual modelo de registro imobiliário por plataformas em Blockchain, o que traria uma maior segurança e transparência às operações, aliada a uma substancial redução de custos à população.
Da mesma forma, a ONU anunciou recentemente que está planejando o lançamento de uma plataforma para registro de propriedade em Blockchain para as áreas urbanas do Afeganistão denominada “goLandRegistry”.
Nessa linha, se combinado com outras inovações como os smartcontracts, o uso da tecnologia Blockchain, pode permitir a automação de diversos processos, hoje altamente burocráticos, tal como a baixa automática de penhoras e/ou hipotecas nas matrículas imobiliárias, reduzindo sobremaneira o custo e tempo de realização desses atos. Essa implementação permitiria que, uma vez paga a dívida, o sistema, por meio de smartcontracts automaticamente realizasse a operação de baixa sem a necessidade de intervenção humana.
Em relação ao serviço de autenticação de documentos, antes prestado de forma exclusiva pelos cartórios de notas, atualmente existem empresas privadas, tal como a brasileira OriginalMy, que utilizando da tecnologia Blockchain, já receberam o devido reconhecido de validade pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, deixando claro que a “fé pública” dos escribas na Suméria, hoje pode ser resolvida com a tecnologia.
Necessidade de modernização dos cartórios
A adoção de novas tecnologias é necessária para manter a relevância em todos os setores, o que não foi ignorado pelo CNJ, uma vez que justifica a edição do Provimento nº 100 — que regulamenta os atos notariais pela via digital — justamente pela “necessidade de evitar a concorrência predatória por serviços prestados remotamente que podem ofender a fé pública notarial”.
A introdução da plataforma do e-Notariado e a regulamentação da realização de atos notariais pela via eletrônica representam um grande avanço por parte do Colégio Notarial do Brasil, em prol da necessária modernização dessa atividade secular.
Evolução cultural e jurídica
Apesar dos enormes avanços tecnológicos, sobretudo decorrentes da implementação da tecnologia Blockchain, por tratar-se de um setor extremamente regulado, algumas mudanças, já permitidas sob o viés tecnológico, dependem de modificação regulatória para que sejam implementadas pelos cartórios e, como sabemos, as mudanças regulatórias, naturalmente, não caminham com a mesma velocidade das inovações tecnológicas.
Assim, para que tenhamos uma verdadeira revolução no setor de cartórios, será necessário um amadurecimento jurídico acerca das mudanças trazidas pelos avanços tecnológicos, bem como uma mudança cultural na sociedade, a qual pode ser impulsionada pela redução substancial dos custos para a prática dos atos, hoje sob monopólio dos cartórios.
Diante de tecnologias como a Blockchain, que propicia os mais elevados níveis de segurança e transparência, sem a necessidade de intermediários e com baixo custo de transação, resta saber como a sociedade enxergará os serviços dos cartórios, frente a concorrência trazida pela tecnologia.