Como o CRISPR pode ajudar a salvar plantações da devastação causada pelas pragas
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Como o CRISPR pode ajudar a salvar plantações da devastação causada pelas pragas

Insetos geneticamente modificados podem ajudar a reduzir a dependência de pesticidas, e ajudar a proteger indústrias bilionárias.

O produtor de uvas da região central da Califórnia, Steve McIntyre, estava familiarizado com a doença de Pierce, mas isso não o preparou para o que viu quando visitou a fazenda de frutas cítricas e abacates de seu irmão no sul da Califórnia em 1998. A doença, que faz com que as videiras sequem e as uvas murchem como balões velhos, existia há muito tempo na Califórnia, mas a infecção que ele viu em uma fazenda adjacente à propriedade de seu irmão parecia diferente. 

“Foi devastador”, diz McIntyre. Hectares inteiros de uvas pareciam que tiveram sua irrigação totalmente cortada. Em seu voo para casa, McIntyre cogitou ligar para um corretor de imóveis para se livrar do terreno. Suas próprias vinhas, ele pensou, estavam condenadas. 

Menos de uma década após ter sido identificado pela primeira vez na Califórnia, um inseto invasivo chamado cigarrinha de asas vítreas (Homalodisca Vitripennis) transformou a bactéria que causa a doença de Pierce de um mero incômodo a um pesadelo. O inseto oblongo, com asas que parecem vitrais tingidos de vermelho, é mais rápido e voa mais longe do que as cigarrinhas nativas do estado, e pode se alimentar de videiras mais resistentes. Sua chegada, que o estado suspeita ter ocorrido no final dos anos 80, potencializou a propagação da doença. 

Uma cigarrinha de asas vítreas adulta, Homalodisca vitripennis. RODRIGO KRUGNER/USDA-ARS

Por meio de inspeções e pulverizações seletivas de pesticidas, o estado conseguiu confinar a cigarrinha invasora ao sul da Califórnia. Mas a doença ainda não tem cura e pode piorar e se tornar mais difícil de combater devido às mudanças climáticas. 

Os pesquisadores agora procuram acrescentar a tecnologia de ponta ao arsenal da Califórnia contra a doença de Pierce, alterando o genoma da cigarrinha de asas vítreas para que ela não possa mais espalhar a bactéria. 

Tal solução é possível graças à tecnologia de modificação de genes CRISPR, que tornou cada vez mais simples modificar os genes de qualquer organismo. A técnica tem sido usada em experimentos de imunoterapia contra o câncer, criação de maçãs e, de forma controversa, embriões humanos. Agora, um número crescente de pesquisadores está usando o CRISPR nas pragas agrícolas para controlar uma série de insetos que, juntos, destroem cerca de 40% da produção agrícola global a cada ano. Se bem-sucedidos, esses esforços podem reduzir a dependência de inseticidas e fornecer uma alternativa às modificações genéticas nas plantações. 

Por enquanto, esses insetos geneticamente modificados estão confinados em laboratórios ao redor do mundo, mas isso está prestes a mudar. Este ano, uma empresa dos EUA espera iniciar testes em estufas, em conjunto ao Departamento de Agricultura dos EUA (USDA), com insetos que danificam frutas e que foram tornados estéreis graças ao uso de CRISPR. Simultaneamente, cientistas de instituições governamentais e privadas estão começando a fazer modificações em mais espécies e a aprender mais sobre genética de pragas. 

O uso de organismos geneticamente modificados permanece controverso, e as pragas agrícolas editadas ainda não foram amplamente aprovadas para liberação nos EUA. É de se esperar que seja um processo regulatório potencialmente demorado e de contínua evolução. Mas os cientistas dizem que o CRISPR marcou um momento crucial para o uso de modificações genéticas em insetos que afetam a agricultura, com mais descobertas esperando no horizonte. 

“Até a chegada do CRISPR, esse tipo de tecnologia simplesmente não existia”, diz Peter Atkinson, entomologista da Universidade da Califórnia, em Riverside (EUA), que está trabalhando na modificação da cigarrinha. “Estamos entrando nesta nova era em que o controle genético pode ser contemplado de forma realista”. 

Conheça seu inimigo 

Os cientistas não sabiam muito sobre a genética da cigarrinha de asas vítreas até recentemente. O primeiro rascunho de seu genoma foi mapeado em 2016, por um grupo do USDA e da Baylor College of Medicine, no Texas (EUA). Mas o trabalho tinha lacunas. Em 2021, pesquisadores da Universidade da Califórnia em Riverside (EUA), incluindo Atkinson, preencheram muitas delas para produzir uma versão mais completa. 

À medida que os cientistas se propõem a modificar genes de mais espécies de pragas, uma melhor compreensão de sua biologia e genética será importante, diz Linda Walling, geneticista de plantas também da Universidade da Califórnia em Riverside que está trabalhando na pesquisa da cigarrinha. “Vamos precisar de um investimento muito grande na compreensão da biologia desses insetos”, diz ela. “Antigamente, nós só queríamos matá-las”. 

Essa compreensão mencionada por ela vai além do simples sequenciamento do DNA. Antes de fazer modificações, os pesquisadores precisam descobrir o que poderia impedir um inseto de atacar uma planta e, em seguida, determinar quais modificações genéticas podem prevenir isso. No caso da cigarrinha, havia um bom candidato em mãos graças a pesquisas anteriores da Universidade da Califórnia, em Berkeley, que mostraram que um carboidrato presente na boca da cigarrinha facilitava a adesão da bactéria causadora de Pierce. Os estudos também apontaram para certas moléculas que os cientistas poderiam editar para mudar isso. 

Drosófila-da-asa-manchada fêmea (Drosophila suzukii) voando acima de um morango. ALAMY

Agora, um grupo da Universidade da Califórnia em Riverside, incluindo Atkinson e Walling, está tentando fazer essas mudanças. 

Parte do desafio é simplesmente encontrar uma maneira de inserir esse mecanismo de modificação genética nos embriões minúsculos e de rápido desenvolvimento dos insetos. 

“A inserção é o segredo de tudo”, diz Wayne Hunter, um entomologista de pesquisa do USDA que trabalhou no rascunho de 2016 do genoma da cigarrinha. 

A equipe de Riverside desenvolveu uma maneira de inserir o sistema CRISPR/Cas9 nos embriões das cigarrinhas de asas vítreas, que têm cerca de 3 mm de comprimento, sem removê-los do local onde são depositados. A técnica, segundo um artigo publicado no ano passado, era “tão simples de executar, que um operador iniciante consegue aplicar uma injeção em um grupo de 20 ovos em aproximadamente dez minutos”. 

Após a injeção, a equipe mostrou que a tecnologia CRISPR poderia cortar e alterar o genoma da cigarrinha. Como prova de princípio, os pesquisadores usaram a tecnologia para eliminar os genes que controlam a cor dos olhos do inseto. Agora, o grupo está tentando usar a mesma tecnologia para transformar o tecido da boca do inseto para que ele aja como Teflon, fazendo com que a bactéria causadora de Pierce não consiga se aderir. 

A equipe recebeu financiamento da USDA e também um conselho de representantes da indústria do vinho, especificamente convocado pelo governo da Califórnia para combater a doença de Pierce. 

O conselho, do qual McIntyre é membro, apoia uma série de abordagens para derrotar a doença, incluindo a modificação genética de videiras e o uso de biopesticidas, que são geralmente derivados de materiais naturais. A doença de Pierce é um problema “especialmente terrível” para os produtores de uva, diz Kristin Lowe, coordenadora de pesquisa do conselho. “Com a maioria dos patógenos de plantas que são [disseminados] por um inseto, você precisa explorar toda e qualquer fraqueza que encontrar, seja na biologia, no meio ambiente, ou na ecologia dessa doença, para obter controle a longo prazo”. 

Operação mosca-da-fruta 

Outra tecnologia CRISPR criada na Califórnia já iniciou o longo processo de comercialização para uso em uma praga agrícola. 

Omar Akbari começou a usar o CRISPR na sua pesquisa de pós-doutorado em engenharia biológica no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), logo após o lançamento de um artigo seminal sobre a tecnologia. Uma década depois, seu laboratório na Universidade da Califórnia, em San Diego (EUA), usou CRISPR em quase uma dúzia de espécies de insetos. 

Um de seus objetos de estudo é a Drosophila suzukii, ou drosófila-da-asa-manchada, uma espécie de mosca-da-fruta que abre buracos em frutas macias e maduras, como cerejas e ameixas, para depositar seus ovos. As moscas, que estragam cerca de US$ 500 milhões em safras de frutas dos EUA todos os anos, já se tornaram resistentes a alguns pesticidas. 

O laboratório de Akbari usou CRISPR para modificar os genes do inseto a fim de criar machos estéreis e matar as fêmeas. Ao soltarem os machos, eles se misturariam com moscas normais, e a incapacidade reprodutiva deles poderia reduzir a população em geral. 

A Agragene, empresa que licenciou a tecnologia de Akbari, arrecadou US$ 5,2 milhões para comercializar esse método de esterilização em pragas agrícolas. A empresa está testando o produto este ano em estufas no Oregon (EUA). 

As possíveis estratégias para controlar as populações de pragas e as doenças que elas transmitem usando CRISPR são inúmeras. “O experimento é limitado apenas por sua engenhosidade, até certo ponto”, diz Nikolay Kandul, que trabalha com Akbari na UC San Diego (EUA). 

Mas os pesquisadores também devem lidar com a biologia e as implicações de suas decisões. Por exemplo, para certos sistemas, como a modificação da mosca-da-fruta de Akbari, uma mudança não deve se perpetuar na população a menos que insetos geneticamente modificados continuem a ser liberados. “É seguro, é eficaz, pode ser controlado e não vai persistir no ecossistema”, diz Akbari. 

Akbari também trabalhou em outra abordagem que poderia ser mais permanente: a genética dirigida. Essa técnica burla as regras do campo, aumentando a chance de um organismo herdar certos genes e espalhá-los pela população. O potencial da tecnologia atraiu entusiasmo e também preocupação (Pesquisadores já estão estudando utilizar a genética dirigida em mosquitos para interromper a transmissão da malária, mas muitos cientistas apontaram riscos potenciais e pediram cautela). 

“Produtos químicos tem um limite de deslocamento antes de se degradarem no meio ambiente”, diz Jason Delborne, professor de ciência, política e sociedade da Universidade Estadual da Carolina do Norte. “Se você inserir um organismo geneticamente modificado que pode se deslocar livremente pelo ambiente, você tem o potencial de mudar ou transformar ambientes em uma enorme escala espacial e temporal”. 

Kandul fala isso sem papas na língua. A genética dirigida, diz ele, pode ser “negligente”. 

A Agragene considerou utilizá-la nas moscas-das-frutas, mas Akbari diz que os executivos decidiram que seria difícil atrair investidores e obter aprovação regulatória. Em vez disso, a empresa optou pela tecnologia de esterilização. Após concluir os testes de laboratório no ano passado, a Agragene está iniciando testes em estufa em colaboração com o USDA, que espera abrir caminho para uma liberação generalizada. 

“Você está reunindo dados suficientes para mostrar que seu inseto estéril é, neste caso, seguro”, diz o CEO da Agragene, Bryan Witherbee, que trabalhou anteriormente na Monsanto e em outras empresas de biotecnologia. 

Os testes que a Agragene concluiu no ano passado deram à empresa a confiança de que seus insetos estéreis poderiam sobreviver e funcionar como insetos não modificados, diz Witherbee, e a empresa também trabalhou em técnicas para produzir insetos estéreis em escala. Mas a Agragene ainda está determinando quais dados precisará enviar à Agência de Proteção Ambiental (EPA, em inglês) dos EUA para obter aprovação para liberar os insetos, um processo que pode levar anos. 

Nos EUA, o ambiente regulatório em torno de insetos modificados por CRISPR está atualmente “evoluindo”, de acordo com um porta-voz da EPA. A orientação governamental divulgada em 2017 definiu uma abordagem coordenada que sugeria que o USDA teria autoridade sobre animais geneticamente modificados relacionados à agricultura. Mas a jurisdição pode variar dependendo se um organismo modificado visa reduzir a população de um inseto ou interromper a transmissão de doenças. Até agora, o governo dos EUA permitiu a liberação de mosquitos geneticamente modificados, mas os testes em pragas de cultivos, como traças-das-crucíferas e lagartas-rosadas, foram limitados. 

Walling e Atkinson, da Universidade da Califórnia de Riverside, dizem que poderá levar anos para refinar pragas agrícolas geneticamente modificadas e obter aprovação para sua liberação. A Agragene espera que o cronograma seja mais rápido: a empresa, que já está em contato com a EPA, tem como meta para 2024 apresentar um pedido de aprovação regulatória para uso comercial de suas moscas-das-frutas e espera que o processo leve até dois anos. 

Para além da modificação 

Modificar geneticamente os insetos pode ser uma tática poderosa, mas alguns especialistas em biologia de plantas e insetos acham que outras técnicas também podem ser promissoras. 

Por mais de uma década, Hunter, o entomologista do USDA, trabalhou em várias tentativas de mapear o genoma de uma praga que causa prejuízos de bilhões de dólares em seis continentes a cada ano: o psilídeo-asiático-dos-citros, que dissemina o greening dos citros, ou também conhecido como huanglongbing e HLB, uma doença que mata árvores cítricas, mas não antes de deixar para trás folhas amareladas e frutos verdes e amargos. 

“Mesmo que a árvore sobreviva, não resta muito o que vender”, diz ele. 

Ele agora faz parte de uma grande equipe financiada por doações que trabalha em uma variedade de métodos potenciais para proteger as árvores do greening. Nos próximos anos, o grupo espera poder focar em vários produtos ou soluções que possam ser comercializados para o uso no campo. 

Psilídeos-asiáticos-dos-citros adultos (à esquerda) e crisálidas (à direita) pendurados em um limoeiro. PEGGY GREB/USDA-ARS; ALAMY

Este ano, Hunter começará a usar o CRISPR para ajustar genes que possam neutralizar o psilídeo como vetor para a propagação do greening. Mas ele diz que plantas modificadas para resistir a bactérias ainda são a solução mais provável para lidar com a doença. “É daí que a verdadeira resposta virá”, diz ele. Focar nesses insetos poderia deixar a doença circulando, embora em uma menor quantidade deles, mas a imunidade das plantas atenuaria o impacto da doença. 

Ainda assim, a modificação de plantas tem suas limitações como solução geral para o problema das pragas agrícolas. Insetos como a drosófila-da-asa-manchada impactam tantas frutas diferentes que produzir variedades de plantas resistentes seria extremamente complicado, diz Anthony Shelton, professor emérito do Departamento de Entomologia da Universidade de Cornell (EUA), que trabalhou na produção das traças-das-crucíferas estéreis. 

Quando se trata da antiga luta entre agricultores e pragas, diz Shelton, é importante adotar uma variedade de novas ferramentas. 

“Acho que todos nós aprendemos o suficiente para saber que não há solução milagrosa na agricultura ou na entomologia médica para tentar controlar as pragas”, diz ele. “Todos nós nos tornamos mais inteligentes, eu espero”. 

Emma Foehringer Merchant é uma jornalista da Califórnia (EUA) que frequentemente cobre mudanças climáticas, energia e meio ambiente.  

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