Pix sem taxa de transferência, abrir conta sem ir à agência do banco. Não faz muito tempo, tudo isso seria impensável. Mas nada teria acontecido não fosse pela tecnologia e mudanças nas regras que permitiram ampliar o uso dessas inovações.
Poucas instituições eram vistas de maneira tão negativa quanto os bancos brasileiros. Até Lei para a demora no atendimento dentro das agências criamos em diversos municípios. Mas ironicamente, o que resolveu as filas nos bancos não foi uma Lei ou decreto, mas sim tornar o sistema mais competitivo permitindo a entrada de startups no jogo.
Com a chegada de bancos digitais como o Nubank, os clientes descobriram que poderiam resolver tudo de um modo mais simples, sem nem mesmo entrar em uma agência. E gastando menos. Um estudo do JP Morgan sugere que os bancos brasileiros ganharam 40% de sua receita por meio de taxas em 2019, ultrapassando em muito o padrão de 15-20% no México, Argentina, Chile e Peru.
E com a fuga dos clientes, os bancões tradicionais correram atrás e hoje oferecem aplicativos mais eficientes e soluções que até pouco tempo eram impensáveis. Mesmo os investidores começaram a descobrir que a poupança era ótima… mas apenas para os bancos. Empresas como XP, EasyInvet (comprada pelo Nubank) e até o BTG, banco dos milionários, mas que abriu um braço digital mais acessível, permitiram a todos o acesso a alternativas de investimentos antes limitadas aos clientes mais endinheirados e espertos dos bancos tradicionais.
Nos passos da China
Para saber para onde caminhamos (ou deveríamos caminhar), vale observar a China. Há pouco mais de uma década o sistema bancário do país ainda era visto como atrasado em relação aos seus pares ocidentais. Não era exatamente igual à realidade brasileira. No Brasil os bancos sempre foram sofisticados, particularmente no quesito tecnologia. Aqui, a limitação estava nos altos custos para os clientes e o acesso ao sistema bancário limitado a uma parcela pequena (e rica) da população.
Mas o governo da China, para resolver seus problemas no setor de bancos, em vez de passar muitos anos construindo tudo sozinho para alcançar seus pares ocidentais, adotou uma estratégia alternativa. Mantiveram as regulamentações bancárias ao mínimo e convidaram gigantes da tecnologia, como Alibaba e Tencent, para entrar no vácuo de regulamentação e resolver o problema para eles.
Alibaba e Tencent já eram empresas de tecnologia estabelecidas, mas ambas competiam ferozmente pelo domínio do mercado. O governo percebeu a oportunidade e alavancou a dinâmica competitiva a seu favor. Elas lançaram seus serviços financeiros online conhecidos como ‘Alipay’ (atualmente conhecido como ‘Ant Group’) em 2003 e ‘Tenpay’ (também conhecido como ‘WeChat Pay’, parte do WeChat) em 2005.
Milhares de cidadãos sem acesso a contas bancárias na China ganharam a possibilidade de acesso ao sistema bancário. Mas os celulares mais avançados ainda eram caros e as redes de internet lentas. Apps complexos e sistemas difíceis de usar não funcionavam na infraestrutura disponível na maior parte do país. Mas algumas empresas já testavam uma tecnologia barata e simples, o QR code.
O QR code é confiável, funciona em qualquer celular com câmera e demanda uma quantidade mínima de dados. A tecnologia foi adotada por Alibaba e Tencent e passou a ser amplamente usada pela população.
Magicamente, bilhões de chineses em um curto espaço de tempo passaram a ter acesso ao sistema bancário. O aplicativo Alipay, carro-chefe da Ant, se tornou uma ferramenta indispensável para mais de 700 milhões de usuários mensais na China, ajudando-os a pagar o almoço, guardar economias e fazer compras a crédito. O dinheiro em papel moeda está desaparecendo na China. Em diversos estabelecimentos, realizar um pagamento de outra maneira que não por meio do QR code se torna cada vez mais difícil.
Girl from Rio
A China deixa evidente que a criação de um cenário legal favorável é o primeiro passo. No Brasil largamos atrás, e como não tínhamos big techs, as startups assumiram esse posto com marcas como Nubank, Pagseguro e Stone despontando.
Mas o caminho ainda é longo e cheio de oportunidades para nos aproximarmos da china: 55 milhões, um quarto da população do país, ainda é considerada “desbancarizada”.
A Pagseguro com o cantor Michel Teló e a atriz Alessandra Negrini na TV e a Stone com uma parceria com a Globo e massiva presença na mídia ajudaram a popularizar as novas tecnologias bancárias e realizaram um trabalho essencial. Mas ainda faltava um passo importante, abraçar a periferia. Pequenos empresários e o cliente insatisfeito dos bancões ainda eram a prioridade das fintechs.
Mas com a entrada de Anitta para o conselho do Nubank o jogo entra em uma nova fase. Mesmo que seja somente marketing, é uma inovação de grandes proporções por mostrar onde o mercado está de olho. Porque a entrada de Anitta no conselho de um dos maiores bancos do país é também uma voz da periferia em um espaço onde ela nunca foi ouvida.
E o que as pessoas querem? A julgar pelos diversos comentários nas redes sociais da cantora: aumento de crédito. “Ok ok… entrei [no] Nubank pra ser a voz do povo… okkkkk… primeiro assunto que levanto na próxima reunião do conselho é aumentar o crédito de vocês… se acalmemmmmm,” postou Anitta em seu Instagram.
O crédito no Brasil é caro. Os grandes bancos cobravam taxas de juros extraordinariamente altas, com alguns consumidores pagando 450% ao ano. O comitê de política monetária decidiu recentemente limitar as taxas de juros a 150%, com taxas médias acima de 306%, ilustrando que o problema permanece sem solução. Os spreads de taxas de juros — a diferença que um banco recebe com empréstimos e a taxa que paga sobre os depósitos — demonstra o quão distante o Brasil está do restante do mundo, com spread de 32,04% contra 3,35% na Rússia e 2,85% na China e menos de 2% na Coreia do Sul. Isso explica porque
O retorno sobre o patrimônio líquido dos bancos no Brasil (17,2%) supera facilmente os EUA (10,6%), Ásia-Pacífico (8,8%) e Europa (5,8%).
Se o Nubank irá atender aos apelos dos seguidores de Anitta ou não é uma incógnita. Possivelmente, o Nubank em algum momento se torne exatamente o que foi criado para combater, um bancão. Mas mesmo que isso aconteça, enquanto o ambiente for favorável à inovação, a competição estará a postos para ganhar o mercado.
Lição chinesa
Novamente a China nos dá um exemplo. As empresas digitais de pagamentos eletrônicos se tornaram tão dominantes no país que o governo, antes bastante liberal nessa área, começou a adotar uma linha dura contra as big techs aumentando a regulamentação do setor, particularmente no que se refere a pagamentos. E quando duas empresas dominam 94% do mercado, é difícil argumentar que não existe um monopólio.
É um equívoco acreditar que o movimento do governo chinês é apenas político. Gigantes de tecnologia na China, como Alibaba e Meituan, há muito tempo se envolvem em práticas anticompetitivas como “er xuan yi”, que significa “escolha um entre dois”, e força os comerciantes a venderem exclusivamente em uma plataforma. E suas operações de empréstimo de fintech claramente têm um elemento de risco moral, com empresas como a Ant Financial obtendo grandes retornos originando empréstimos sem assumir muito risco.
O tamanho e a influência de Alipay colocaram a Ant no centro de um redemoinho de preocupações para Pequim, incluindo o excessivo poder das plataformas digitais e o papel da tecnologia nas finanças e a influência de magnatas como Jack Ma, fundador do Alibaba, quando o líder da China, Xi Jinping, etá buscando maior controle do Estado sobre a economia.
Medidas como obrigar as big techs a criarem um grande banco de dados que possa ser acessado pelos bancos estatais podem ser vistas como uma maneira de proteger os bancões. Por outro lado, futuramente jovens startups também podem eventualmente ter acesso, o que aumentaria drasticamente a competição no setor. Possivelmente o governo esteja lutando não apenas para reafirmar seu controle político, mas também para novamente aumentar a concorrência.
Agora, a China combate o Bitcoin e trabalha em sua própria moeda digital. Não é do interesse de qualquer país perder o controle sob seu sistema financeiro, menos ainda do Partido Comunista. A China pode não ter Anitta, mas possui uma invejável capacidade de estimular a inovação.
Foto – Luiza Ferraz/Divulgação
Este artigo foi produzido por Guilherme Ravache, jornalista, consultor digital e colunista.
O texto reflete a opinião do autor e não necessariamente nossa visão editorial.