O Brasil ocupa hoje lugar de destaque no mapa digital global. De acordo com dados do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (Nic.br), mais de 84% da população está conectada à internet, o que coloca o país entre os maiores mercados digitais do planeta. A conexão chegou à rotina, ao trabalho, às relações pessoais e às formas de consumo.
Acesso a cursos, serviços públicos na palma da mão, novos modelos de negócio e uma participação mais ativa do cidadão em debates públicos, que antes aconteciam em espaços restritos, foram algumas das portas abertas por essa hiperconectividade.
Se, no passado, o acesso à informação era privilégio de poucos, agora ele se aproxima de um bem social compartilhado em grande escala. Isso ampliou a produção de conteúdo, fortaleceu redes de solidariedade, expandiu o consumo cultural e impulsionou a economia digital, que já ocupa uma parcela importante do PIB brasileiro. O direito fundamental de acesso à informação, previsto no artigo 5º, inciso XIV da Constituição Federal, se revela de forma ainda mais nítida no ambiente virtual, ao evidenciar mecanismos de inclusão e fortalecimento da cidadania.
Simultaneamente, a expansão do ecossistema digital traz consigo um lado menos visível. A conexão contínua favorece a hiperexposição, já havendo estudos de estímulo a vínculos artificiais e relações de dependência que atravessam a vida privada e o espaço público1.
Em meio a um fluxo permanente de conteúdos, na maioria das vezes sem qualquer mediação, cresce o risco de desinformação, tornando-se cada vez mais cinzenta a zona que separa fatos de opiniões. A sociedade brasileira vive, assim, um paradoxo crescente: a mesma tecnologia que emancipa também pode aprisionar, seja pelo excesso de estímulos, seja pelo enfraquecimento dos vínculos consistentes.
Educação digital como base da cidadania
É nesse contexto que a educação digital ocupa um lugar estratégico. O artigo 205 da Constituição Federal define a educação como direito de todos e dever do Estado e da família, promovida com a colaboração da sociedade. Essa definição, pensada a partir da atualidade e de suas demandas, precisa agora incluir de forma explícita a dimensão digital.
Não basta saber usar aplicativos, redes sociais ou ferramentas de busca. Educação digital significa desenvolver uma consciência crítica capaz de orientar escolhas diante do excesso de informações. Aprender a avaliar fontes, identificar manipulações, reconhecer discursos de ódio, entender como funcionam recomendações algorítmicas e saber quando é necessário se desconectar.
Esse tipo de formação interessa a todos, em todas as idades. Crianças, adultos e pessoas idosas precisam de referências para que seja possível usufruir dos benefícios da conectividade sem se tornarem reféns de seus riscos. A educação digital passa a ser condição para o exercício pleno da cidadania, para o acesso a oportunidades e para a proteção de direitos fundamentais em um ambiente cada vez mais mediado por tecnologias.
O que a regulação da Inteligência Artificial nos mostra
Quando o assunto é Inteligência Artificial, uma das referências globais mais atualizadas é o EU AI Act2, primeiro marco legal abrangente sobre IA no mundo. Dentre os pontos trabalhados, o regulamento do bloco europeu abarca noções que que dialogam diretamente com a ideia de educação digital, sendo a principal, a obrigação de alfabetização em IA.
O artigo 4º do Marco Legal determina que fornecedores e desenvolvedores de sistemas de IA devem adotar medidas para garantir que suas equipes e todas as pessoas que operam esses sistemas em seu nome tenham um nível adequado de compreensão sobre a tecnologia, considerando conhecimento técnico, experiência, formação e contexto de uso. Isso inclui também o perfil das pessoas ou grupos que irão interagir com esses sistemas.
Em termos práticos, o regulamento não se limita ao treinamento interno de times. Ele amplia o foco para quem está na ponta, usuário ou grupo afetado pelo sistema. Ou seja, segundo o regulamento europeu, fornecedores e desenvolvedores precisam levar em consideração o público sobre o qual a tecnologia vai incidir, ajustando desenho, comunicação e implementação ao nível real de compreensão das pessoas.
A inovação da legislação europeia está em deslocar a alfabetização em IA do público interno das corporações para uma responsabilidade que alcança o destinatário da tecnologia. O objetivo final é a proteção efetiva de direitos fundamentais em uma sociedade em que decisões automatizadas, recomendações e classificações algorítmicas passaram a integrar o cotidiano de milhões de pessoas.
Infância em ambiente de hiperexposição
As plataformas digitais são construídas para manter a atenção do usuário por mais tempo, por meio de recomendações personalizadas, notificações constantes e mecanismos de recompensa. Essa lógica de design busca criar vínculos emocionais com conteúdos, influenciadores e comunidades virtuais.
Esse modelo não é necessariamente negativo, mas se torna significativamente mais complexo quando substitui, de forma contínua, as referências externas e as interações concretas do cotidiano. Adultos e crianças são expostos a um fluxo sistêmico de estímulos e convites à interação que, sem qualquer filtro, podem comprometer a autonomia crítica e a capacidade de decidir o que realmente merece atenção.
Nesse ambiente, a superexposição se torna quase regra. O incentivo à autopromoção, à construção de reputações digitais e à busca incessante por engajamento cria um ciclo em que a validação externa passa a ser critério de pertencimento. Crianças e adolescentes, em fase de desenvolvimento emocional e cognitivo, são especialmente sensíveis a essa dinâmica.
A Constituição Federal, em seu artigo 227, e o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 3º, são claros ao afirmar que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar, com absoluta prioridade, dignidade, respeito e convivência comunitária a crianças e adolescentes. Hoje, isso inclui também a forma como eles se relacionam e participam do espaço digital.
Entre proteção legal e práticas digitais cotidianas
O ECA afirma que nenhuma criança ou adolescente pode ser alvo de negligência, exploração ou violência, e proíbe o trabalho infantil antes dos 14 anos, salvo na condição de aprendiz. Na prática, porém, vemos um número crescente de crianças e adolescentes expostos em conteúdos digitais que, sob aparência de oportunidade ou expressão espontânea, podem representar formas indiretas de exploração econômica e/ou emocional.
Essa tensão, entre o que a lei prevê e o que as práticas digitais normalizam, indica para a necessidade de atualização da aplicação e vigilância em torno dos direitos fundamentais em ambientes virtuais. A proteção integral, prevista em lei, precisa dialogar com a realidade, por exemplo, de influenciadores infantojuvenis, monetização de conteúdo produzido por crianças, exposição de rotinas familiares e participação de crianças e adolescentes em desafios virais.
Quando olhamos para crianças e adolescentes, que muitas vezes são, ao mesmo tempo, público consumidor e produto da economia de atenção, surge uma pergunta central: que tipo de ambiente digital queremos construir? Trata-se da escolha entre (i) uma sociedade que compreende a infância como mercadoria, em que vulnerabilidades são exploradas como entretenimento, e (ii) uma sociedade em que a tecnologia é instrumento para ampliar direitos e oportunidades.
No Brasil, os indicadores oficiais de violência contra crianças e adolescentes seguem em patamar preocupante, com 202.948 casos registrados entre 2015 e 2021, segundo o Ministério da Saúde. A violência antecede o ambiente digital, mas encontra na internet um espaço que pode facilitar a sua reprodução, seja pela rapidez da exposição, seja pela dificuldade de controle. A hiperconexão não cria a vulnerabilidade, mas amplia o alcance, a velocidade e o impacto quando a tecnologia é usada de forma desorganizada.
Design das plataformas e vínculos artificiais
Casos recentes revelam que a hiperexposição digital não resulta apenas de escolhas individuais. Muitas vezes, ela é efeito direto de decisões de engenharia de produto. Quando sistemas de Inteligência Artificial são desenhados para simular vínculos emocionais, como a figura de um conselheiro ou terapeuta, existe um risco: criar uma sensação de acolhimento que pode ser confundida com cuidado real, sobretudo entre públicos vulneráveis, como crianças e adolescentes.
Esse tipo de desenho técnico pode provocar relações assimétricas. De um lado, um sistema capaz de aprender com interações e responder de forma personalizada. De outro, uma pessoa em busca de escuta, pertencimento ou companhia. O debate, nesses casos, não se limita à orientação familiar ou à educação digital, embora ambas sejam essenciais. Ele alcança a forma como produtos digitais são concebidos, testados e disponibilizados.
Isso exige que a arquitetura das plataformas considere, desde o início, a proteção de direitos fundamentais, principalmente de grupos mais vulneráveis. Controles de uso, transparência sobre o funcionamento de sistemas de recomendação e limites ao tipo de interação que um sistema de IA pode simular com crianças e adolescentes são parte dessa agenda.
Corresponsabilidade no ecossistema hiperconectado
Diante desse cenário, mais produtivo do que buscar culpados é perguntar como estamos, como sociedade, utilizando a conectividade que conquistamos. Os ganhos de inclusão são evidentes, mas a expansão do acesso demanda também uma revisão constante dos modos de uso.
Educação digital, nesse sentido, não se limita a uma disciplina escolar ou a um conjunto de cartilhas. Ela deve ser contínua e transversal. Envolve ensinar habilidades técnicas, mas também formar consciência crítica para filtrar conteúdos, reconhecer riscos de exposição, identificar manipulações e estabelecer limites de tempo e de engajamento em ambientes virtuais.
A Constituição, no artigo 205, define que a educação deve ser orientada ao pleno desenvolvimento da pessoa, ao preparo para o exercício da cidadania e à qualificação para o trabalho. Em uma realidade hiperconectada, esses objetivos passam necessariamente por uma educação digital que prepare as comunidades para o mercado de trabalho, para a vida pública e para a construção de identidades em rede.
Famílias precisam de apoio para orientar o uso responsável das redes. Escolas devem incorporar a reflexão sobre cidadania digital em seus projetos pedagógicos. Empresas de tecnologia têm o dever de criar ferramentas mais transparentes de controle e segurança. O Estado, por sua vez, precisa garantir políticas públicas que combinem inclusão com formação crítica. Trata-se de uma corresponsabilidade, que não pode ser delegada a apenas um ator social.
Tecnologia para ampliar direitos, não vulnerabilidades
Não há respostas simples. Mas há um ponto comum: todos participamos, em alguma medida, do mesmo ecossistema hiperconectado. O que publicamos, como reagimos, quanto tempo permanecemos nas plataformas, tudo isso alimenta a dinâmica desse ambiente.
A proteção da infância, a autonomia de adultos e o envelhecimento com dignidade dependem menos da identificação de vilões e mais da disposição coletiva de discutir limites e possibilidades de uso da tecnologia. A educação digital, nessa perspectiva, se torna prática de cidadania e exercício de autocontrole, tanto individual quanto institucional.
Em última instância, o debate sobre conectividade não trata apenas do direito de acesso, mas da qualidade da experiência humana em um mundo em que as fronteiras entre público e privado, consumo e identidade, autonomia e dependência se tornam cada vez mais difusas. Pensar a cidadania digital é, portanto, pensar que tipo de sociedade desejamos construir e se estamos dispostos a assumir, juntos, a responsabilidade por esse projeto.
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Notas:
1 WILLIAMS, Rhiannon. É fácil cair numa relação com um chatbot de IA – MIT Technology Review. MIT Technology Review – Brasil. Acesse.
2 European regulation on artificial intelligence. Em tradução livre, o Regulamento (UE) 2024/1689 da União Europeia para Inteligência Artificial.





