CAR-T: terapia ultrapersonalizada aplica tecnologia à biologia humana
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CAR-T: terapia ultrapersonalizada aplica tecnologia à biologia humana

A potencial “cura” no próprio paciente: células reprogramadas combatem o câncer e trazem altos índices de remissão. Parece simples, mas a técnica que permite tal proeza envolve um processo rigoroso e extremamente customizado.

A revolução industrial teve grande impacto sobre a sociedade e na saúde não foi diferente. A maior disponibilidade de alimentos, melhores condições de moradia e de infraestrutura, como o saneamento básico, promoveram uma transição relevante nos padrões de doenças até então. O controle e posterior declínio das doenças infecciosas permitiu uma maior longevidade e, com isso, as pessoas se tornaram mais suscetíveis ao diagnóstico de outras patologias, em grande parte relacionadas ao fator de risco do envelhecimento: as doenças cardiovasculares e os cânceres. 

Durante muito tempo, as doenças cardíacas se sobrepuseram às neoplasias como principal causa de morte. Os cientistas apontam que, novamente, a sociedade está diante de uma transição epidemiológica global, desta vez entre os diferentes tipos de doenças crônicas. Uma pesquisa publicada em 2018 no Annals of Internal Medicine traça o cenário de que o câncer já ultrapassou as doenças cardíacas como a principal causa de morte em países de alta renda e pode escalar ao patamar de doença que mais mata no mundo em poucas décadas1 

Contudo, também é fato que as inovações desenvolvidas para combater diferentes tipos de câncer têm evoluído em grande medida. Na dianteira da revolução do tratamento onco-hematológico está a terapia com células CAR-T. A tecnologia consiste em usar as próprias células de defesa do paciente – no caso, os linfócitos T – para combater a doença. Modificadas geneticamente, essas células são programadas para reconhecer e atacar os tumores. No Brasil, três terapias com células CAR-T já têm registro aprovado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) 

A potencial “cura” sob demanda 

Uma das indústrias produtoras dessa terapia celular é a Kite, um braço da biofarmacêutica Gilead. O produto da empresa foi aprovado pela primeira vez para comercialização e tratamento de pacientes em 2017 pela Food and Drug Administration (FDA), a agência regulatória norte-americana. O estudo ZUMA-1, que embasou o registro para com linfoma de grandes células B (LGCB), apontou para uma taxa de resposta objetiva de 82%, sendo que 58% tiveram remissão completa da doença. 

Entre o diferencial em relação aos demais produtos liberados no país, está o fato de o processo produtivo da terapia ser mantido sob domínio total da fabricante. A gerente de assuntos regulatórios da Kite, Vanessa Marques, destaca o quão personalizado é o tratamento: “Esse processo é único e diferente de um medicamento convencional. Quando eu falo de medicamento convencional, eu incluo medicamentos sintéticos, biológicos, todos aqueles que são fabricados com materiais comerciais, que podem dar origem a vários lotes de produtos em grande escala e que vão possibilitar o tratamento de uma série de pessoas que têm a indicação para aquele medicamento. Já para o CAR-T, estamos falando de pegar matéria-prima individualizada (plasma sanguíneo) direto do paciente e que vai voltar para ele no final do processo de fabricação. Cada coleta corresponde a um lote somente, destinado a um paciente específico”. 

Uma vez coletado o material do paciente, ele segue para a planta fabril, localizada na Holanda ou nos Estados Unidos. Tudo é previamente planejado e ajustado em uma cadeia de transporte resfriada controlada, já que as células do paciente não podem ultrapassar o tempo de 60 horas em deslocamento. “Precisamos estar bem alinhados em cotas de voo, liberação de alfândega e liberações pela vigilância sanitária para que não tenha nenhum atraso nesse transporte do material do paciente”, detalha Vanessa. 

No final de 2022, novos e importantes resultados foram divulgados durante a Reunião Anual da Sociedade Americana de Hematologia, descrevendo o impacto da redução do tempo conhecido como “veia a veia” para o desfecho clínico de cada caso2. Esse período compreende a retirada dos linfócitos do paciente até a infusão do produto final – quando as células já estão devidamente reprogramadas. Por esse motivo, as empresas fabricantes estão constantemente revisitando seus processos a fim de diminuir tal tempo e disponibilizar o medicamento ao paciente em um intervalo menor. 

No caso do Brasil, o “veia a veia” tem um tempo estimado em cerca de um mês. Uma vantagem que a gerente considera para a agilidade do processo de fabricação é a autonomia dos insumos críticos para o processo, sem depender de terceiros na fabricação. 

“Hoje, um problema para a indústria está no vetor viral, de depender de terceiros [para o fornecimento]. No nosso caso, a planta da Kite fabricante do vetor viral foi aprovada no final do ano passado pela FDA e em abril, na Europa. Então, nós não dependemos de parceiros para a fabricação do vetor viral. O vetor viral é extremamente importante, porque é ele que vai colocar o transgene, responsável pela atividade do medicamento, dentro da célula”. 

 A diretora de Garantia de Qualidade da Kite, Erika Matsumoto, lembra ainda que a retirada das células do paciente e a infusão do CAR-T requerem centros hospitalares preparados, que passam por um processo de qualificação e treinamento antes de estarem aptos a iniciar o tratamento em seus pacientes. Até o momento, há seis instituições credenciadas no Brasil para oferecer o tratamento com a terapia. 

“Todas as atividades de coleta das células e manuseio do produto precisam ser padronizadas porque também o sucesso do tratamento tem grande participação do hospital nesse caso, pensando que eles estão coletando a matéria-prima e ao final, realizando a administração do produto final. Precisamos garantir que eles tenham a habilidade, processos implementados, os equipamentos e instalações adequados para o manuseamento e rastreabilidade do material”, esclarece. 

Por todas essas particularidades, Erika argumenta que o custo da terapia considera não só as pesquisas para o desenvolvimento do produto e hoje a manufatura em si, mas todo o complexo sistema de logística. 

 “Todo esse tratamento é feito one-shot [uma dose], diferente de ciclos de quimioterapia de várias etapas. Nesse caso, a retirada das células acontece uma vez só, esse material vai para manufatura, retorna e é realizada a infusão no paciente. Pensando que existe todo um custo de medicamento, tratamento e internação, trata-se de um pacote só. O valor pode assustar, mas aqui estamos falando de uma dose só”. 

 Tecnologias seguem avançando 

 Segundo a Anvisa – autoridade regulatória do Brasil – para aprovação do produto da Kite, foram necessários 258 dias corridos desde a submissão dos documentos pela farmacêutica até a publicação do deferimento final pela reguladora. Esse período considerou ainda as inspeções presenciais realizadas nas plantas fabris no exterior. Nos EUA, por exemplo, a aprovação demorou 244 dias. Na avaliação do gerente responsável pela área de terapias avançadas na Anvisa, João Batista Silva Júnior, a análise brasileira tem seguido as médias das principais agências internacionais. 

“O processo de registro é complexo, eles têm que enviar toda a documentação pré-clínica, os dados clínicos, todos os estudos feitos e consolidados, às vezes dados de cada paciente, os dados da qualidade do produto, a evolução dos testes. Além disso, a Anvisa vai em todas as plantas produtivas para atestar a certificação de boas práticas de fabricação”, detalha. O especialista observa que produtos de terapia avançada, pelo caráter inovador, tendem a ter uma aprovação mais demorada, já que a literatura médica não é consolidada a ponto de apresentar guias clássicos, mas avalia que isso deve melhorar à medida que passe a existir mais conhecimento acumulado tanto por parte das autoridades regulatórias quanto por parte das fabricantes. “Esse entendimento das empresas é fundamental. A parceria na disponibilização de informações ajuda muito. Fora isso, existe também um movimento que é o desenvolvimento de novas tecnologias para superar determinadas questões. Por exemplo, já se pesquisa o CAR-T alogênico, que se produz a terapia a partir das células de um doador saudável, aí não precisa exportar e importar; ou plataformas de produção descentralizadas, que daí a indústria pode ter uma plataforma no Brasil para produção do CAR-T”, avalia João Batista. 

Paralelamente a esse avanço, há também o monitoramento de dados de mundo real com os pacientes tratados no país. No caso das terapias gênicas, uma resolução da Anvisa determina que a concessão de registro do produto tem validade por cinco anos, podendo ser renovada por mais dez, mediante apresentação anual — durante todo esse período — de dados conforme um Termo de Compromisso assinado entre as partes. A ação faz parte da estratégia de mitigação de efeitos secundários e do plano de gerenciamento de risco. 

Como viabilizar? 

O presidente da Aliança para Saúde Populacional (Asap) e CEO da EGO, rede clínica voltada à serviços multidisciplinares na área da saúde, Claudio Tafla, tem acompanhado as discussões em torno da avaliação de tecnologias em saúde (ATS) para a oferta das terapias com células CAR-T. Tafla acredita no potencial desses tratamentos, porém alerta para a necessidade de que eles sejam incorporados de maneira financeiramente sustentável. 

“É uma terapia que vem para mudar o prognóstico de várias doenças, mas a discussão tem sido muito rasa. Técnico-cientificamente já tem comprovação para dizer que é uma ótima tecnologia, só que economicamente ainda se discute o impacto dessas tecnologias no sistema de saúde. Não é a essa discussão que deve ser feita, e sim como o sistema pode se juntar e viabilizar sustentavelmente essa tecnologia para quem precisa”, avalia. 

O gestor cita o exemplo do Reino Unido, que criou um fundo específico para custear demandas de terapias avançadas. “Existe uma falta de recursos no Brasil, mas além disso existe a necessidade de uma melhor gestão, de acomodar as necessidades, as receitas, diminuir os desperdícios”. Ele lembra ainda que toda a avaliação de nova tecnologia precisa extrapolar o custo da droga para o impacto no sistema, considerando custos como internações, consultas e exames, e uso de equipamentos por aqueles que não tiveram acesso à inovação. 

Contudo, Tafla pondera que passou a ser comum no Brasil a judicialização dessas demandas, fazendo com que o sistema oferte produtos de alto custo repentinamente, sem planejamento. Por isso, ele reforça mais uma vez a importância de uma discussão ampla e profunda com a participação de todos os envolvidos: sociedade civil, governo, sistema privado e farmacêuticas. 

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