O brasileiro é notório por sua aptidão digital. Do pioneirismo na adoção do Orkut à rápida aceitação de apps de mensagens como o WhatsApp; dos bancos digitais às nossas urnas eletrônicas. Não faltam exemplos de como o Brasil, não raro por suas necessidades, se torna pioneiro em algumas áreas de tecnologia.
E o próximo grande salto global na tecnologia deverá ser rumo ao metaverso. O autor Neal Stephenson é o responsável por cunhar o termo metaverso, que apareceu pela primeira vez em seu livro de ficção científica Snow Crash, de 1992. Na história, humanos na forma de avatares interagem uns com os outros em um mundo virtual.
A maneira mais fácil de entender o metaverso e como ele mudará nossas relações com a tecnologia e modo de interagir socialmente, é olhar para o Fortnite. Esse game está desenvolvendo um mundo compartilhado, onde jogadores e marcas interagem no mesmo espaço virtual. Além das batalhas, há cada vez mais shows, eventos e até lançamentos de produtos dentro do jogo.
O músico Travis Scott criou um show, o Astronomical, especialmente para o Fortnite. Quase 30 milhões de pessoas passaram nove minutos totalmente imersas em sua música.
O termo “meta” significa “além”. Então, o metaverso é a extensão do universo das realidades física e virtual. O metaverso é o espaço virtual coletivo e compartilhado criado quando o mundo físico converge com o mundo virtual, que inclui realidade virtual, realidade aumentada e internet.
Metaverso verde e amarelo
Mas por que o Brasil pode liderar essa corrida para o metaverso? Primeiramente, nossa vasta população e seu grande interesse por tecnologia. Hoje, o Brasil já tem 94,7 milhões de gamers, de acordo com um novo relatório da Newzoo, empresa de pesquisa especializada em games. Um número impressionante se imaginarmos que a população total no país é de pouco mais de 200 milhões de habitantes.
Isso nos torna o quinto maior mercado de jogos do mundo, gerando cerca de US$ 2,3 bilhões em 2021. Os jogos para dispositivos móveis respondem por quase metade desse mercado.
Hoje, temos uma multidão de jovens que crescem jogando Roblox e outros games. Infelizmente, a falta de opções de lazer nos grandes centros urbanos brasileiros, mesmo antes da pandemia, acelerava o processo de imersão, particularmente dos mais jovens, nas telas. Mas o resultado final é uma população cada vez mais familizarizada com o mundo virtual.
Uma particularidade do metaverso é que ele está cada vez menos limitado pelo conhecimento técnico. Plataformas como o Roblox, para muitos uma das maiores portas de entrada para o metaverso, permitem que qualquer um, mesmo com baixo conhecimento de programação, desenvolva seus próprios jogos. Isso, de certa forma, “compensa” as fraquezas acadêmicas de boa parte da população. Os jogos do Roblox são criados pelos próprios usuários, e 67% dos usuários do Roblox têm menos de 16 anos.
O Roblox usa uma linguagem de programação bastante acessível e cada vez mais crianças a utilizam. Já existem mais de 7 milhões de desenvolvedores na Roblox Studio, a ferramenta de desenvolvimento da plataforma, que disponibiliza mais de 18 milhões de jogos aos 199 milhões de usuários mensais. Esses desenvolvedores da comunidade ganham mais de US$ 200 milhões por ano da empresa.
O fato é que mesmo com grande parcela da população relegada ao ensino de baixa qualidade no Brasil, temos centros de excelência. A linguagem usada pela Roblox, por exemplo, teve sua origem no Brasil. Foi desenvolvida com base em uma linguagem de programação chamada Lua, que nasceu na PUC do Rio de Janeiro, em 1993, para ser usada em um projeto da Petrobras. Mas fez tanto sucesso que ganhou o mundo todo.
A linguagem lua é mais uma demonstração do potencial brasileiro nessa arena. Como escreveu Ronaldo Lemos na Folha de S. Paulo, “os criadores da linguagem, Luiz Henrique de Figueiredo, Waldemar Celes e Roberto Ierusalimschy, licenciaram-na em modelo aberto, permitindo que qualquer pessoa a utilize livremente. Deram, assim, um presente para o mundo e deveriam ser reconhecidos universalmente no Brasil (e no mundo) por essa façanha”.
Um mercado de bilhões
Os números da Roblox indicam o potencial do mercado. A empresa abriu capital neste início de ano na Nasdaq e foi avaliada em mais de US$ 45 bilhões. Os jogos são gratuitos para baixar e jogar, mas a empresa ganha com a compra e venda de itens nos jogos. Roupas mais bacanas, acessórios, peças decorativas e habilidades especiais no game são negociadas em Robux, a moeda virtual do game. Em troca de manter os servidores do jogo e o sistema de pagamentos, a empresa recebe comissões de todas as vendas.
Além de centros de excelência como a PUC-Rio, há um nítido aumento de empresas unicórnio no Brasil ligadas à tecnologia. Há mais de uma dezena de empresas avaliadas em mais de US$ 1 bilhão no país e outras 17 candidatas na fila e muito próximas de superar essa valoração. Um dos destaques entre esses unicórnios está a Wildlife, avaliada em mais de US$ 3 bilhões.
Fundada em 2011 pelos irmãos Victor e Arthur Lazarte, a Wildlife é uma das maiores empresas de jogos para dispositivos móveis do mundo. Em nove anos, lançou mais de 60 jogos, incluindo sucessos como o Sniper 3D, Zooba, Tennis Clash, War Machines e Colorfy. Os jogos da companhia já possuem mais de 2 bilhões de downloads ao redor do mundo. A empresa emprega mais de 700 colaboradores.
Se por um lado temos expertise técnica, além de capital atraído pelo crescente número de unicórnios, na outra ponta temos um tremendo potencial de mão de obra. O desemprego é fator chave no país. A mesma multidão que complementa a renda dirigindo para aplicativos poderia encontrar uma nova fonte de renda desenvolvendo aplicações virtuais para o metaverso usando ferramentas relativamente acessíveis, a exemplo do que já acontece no Roblox.
A China tem mais gamers do que a população dos Estados Unidos, Japão, Alemanha, França e Reino Unido somadas. Também é um prodígio tecnológico. Seria um oponente imbatível para o Brasil, mas como as rígidas regras de controle de jogos implementadas nos últimos anos pelo governo chinês mostram, um mundo virtual e longe do controle do Estado talvez não esteja nos planos de Pequim. E as recentes medidas de controle às big techs chinesas aplicadas pelo governo do país, impondo a venda de ativos como os sistemas de pagamentos dessas empresas, deve desacelerar a entrada do país asiático no metaverso.
Estados Unidos, Japão e demais países desenvolvidos têm populações envelhecendo. Ou seja, a demografia e a política jogam a favor do Brasil no metaverso.
Entrave para o metaverso
De todo modo, rumo ao metaverso ainda existe um desequilíbrio em favor de players tradicionais como a Apple e o Google em função do controle que exercem sobre suas lojas de aplicativos. Mas o processo da Epic Games, desenvolvedora do Fortnite, contra a Apple que começou no início deste mês, pode acelerar essa mudança e reduzir o domínio das big techs.
Tim Sweeney, o bilionário fundador e CEO da Epic Games, tem a ambição de que a legião de jovens fãs do Fortnite possam transformar o game em uma rede social e ajudar a criar o “metaverso”. Mas Sweeney vê a Apple como um obstáculo para isso acontecer. O controle da fabricante do iPhone sobre como as pessoas acessam o “Fortnite” e quaisquer outros aplicativos móveis é o problema. Além de ditar as regras de como os apps funcionam, a Apple, por meio de sua App Store, retém até 30% da receita dos apps.
Para burlar o controle da Apple, a Epic contornou as taxas e regras da App Store em agosto passado, introduzindo seu próprio sistema para processar compras de usuários em versões móveis do “Fortnite”. Apple, e depois o Google, baniram o Fortnite de suas lojas. A Epic também processou o Google.
Sweeney começou a Epic em 1991, no porão da casa dos pais. Ele tinha 20 anos de idade, hoje tem uma fortuna estimada de US$ 9 bilhões. O empreendedor é excêntrico e há quem diga que nem se importe com o dinheiro. Para ele, seu patrimônio seria somente um meio de acelerar a criação do metaverso. É mais ou menos como o personagem idealista que criou o metaverso no filme Jogador Nº 1, de Steven Spielberg.
Independentemente de quem vença essa batalha, Epic ou Apple, é inegável que passamos cada vez mais tempo em espaços virtuais, consumindo bens virtuais e vivendo experiências virtuais. Uma série de novas tecnologias está nascendo para conectar esse universo, como o colunista Bruno Natal comentou aqui na MIT Tech Review em um ótimo texto sobre NFT, metaversos, Web3 e o futuro digital.
Agora, por todas as suas particularidades, o Brasil pode saltar na frente nessa nova economia e ser um dos líderes na corrida rumo ao metaverso.
Este artigo foi produzido por Guilherme Ravache, consultor digital e colunista.