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Pense em uma família que já trocou as lâmpadas de casa, comprou eletrodomésticos eficientes, considera colocar placas solares no telhado, mas continua vendo a conta de luz consumir uma fatia incômoda do orçamento. Em média, os brasileiros destinam 4,5% da sua renda anual apenas para pagar a tarifa residencial de energia, porcentagem superior à de países como Espanha, Alemanha, Chile e Costa Rica, segundo estudo da ABRACE Energia, associação que representa os grandes consumidores de energia.
Entre os brasileiros mais pobres, a realidade se torna ainda mais hostil. A conta de luz pode consumir até 18% da renda mensal, de acordo com a nota técnica “Caminhos para a Justiça Tarifária no Setor Elétrico Brasileiro”, elaborada pela PSR e pela Aliança Global de Energia para as Pessoas e o Planeta (GEAPP, em inglês), que apresenta recomendações de políticas públicas para enfrentar a injustiça tarifária no Brasil.
Agora, enquadre essa cena em um país que gera quase um quarto de sua eletricidade a partir do vento e do sol, e 88% da energia elétrica a partir de fontes renováveis, de acordo com o Balanço Energético Nacional 2025, elaborado pelo Ministério de Minas e Energia e pela Empresa de Pesquisa Energética. A combinação parece perfeita: matriz limpa e abundante, conta de luz acessível e sistema robusto. Mas a realidade insiste em mostrar algo diferente.
Secas mais longas, ondas de calor intensas e temporais severos pressionam a rede elétrica. O operador do sistema precisa equilibrar em tempo real fontes intermitentes, como eólicas e solares, com reservatórios hidrelétricos menos volumosos que no passado. Em paralelo, o consumidor sente no bolso o peso de encargos, subsídios e custos de uma infraestrutura extensa, sujeita a perdas técnicas e comerciais, que a ANEEL identifica como parte importante do problema tarifário.
Com uma das matrizes elétricas mais limpas do mundo, mas tarifa alta e um sistema mais exposto a extremos climáticos, a pergunta que se impõe é direta: como transformar essa vantagem ambiental do Brasil em energia acessível, confiável e competitiva? É nesse ponto que a convergência entre gás natural e eletricidade deixa de ser debate setorial e passa a ser peça de um projeto maior de transformação energética.
O paradoxo brasileiro: energia limpa, tarifa cara e sistema vulnerável
A fotografia recente do setor elétrico impressiona. O país consolida a liderança em renováveis, com as hidrelétricas ainda como base da matriz e a energia eólica avançando de forma acelerada. Só a potência instalada de eólicas já ultrapassa 30 gigawatts, o equivalente a cerca de 15% da matriz elétrica brasileira, segundo dados do Ministério de Minas e Energia. A energia solar centralizada e distribuída também cresce em ritmo de dois dígitos ao ano, reforçada pela biomassa e pela agroenergia.
Ao mesmo tempo, o Operador Nacional do Sistema alerta para um quadro mais delicado, com menor capacidade de regularização hídrica e maior dependência de fontes intermitentes. A combinação de reservatórios mais rasos, maior participação de renováveis variáveis e eventos climáticos extremos torna o sistema mais sensível a períodos de escassez e picos de consumo. Em cenários desse tipo, o país recorre a usinas termelétricas mais caras, acionadas por longos períodos, o que eleva custos e emissões. O contraste é evidente, e se materializa em uma matriz limpa que não se converte, na mesma proporção, em competitividade e bem-estar econômico.
Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica, a tarifa reflete um conjunto de fatores estruturais. Entram nessa conta o acionamento prolongado de termelétricas durante estiagens, as perdas técnicas e comerciais na rede, a necessidade de manter uma infraestrutura extensa e exposta a eventos climáticos e a dependência de equipamentos importados.
Como avalia Débora Oliver, Diretora-Presidente de Negócios de Gás da EDG Energisa Distribuição de Gás, a transformação energética depende de uma integração equilibrada entre diferentes fontes, capaz de garantir segurança e previsibilidade ao sistema.
Na visão da executiva, o gás natural tem papel estratégico ao oferecer estabilidade e flexibilidade a um setor cada vez mais baseado em renováveis. O ONS reforça a necessidade de ampliar os investimentos em armazenamento, redes inteligentes e transmissão, etapa essencial para transformar a sustentabilidade em poder econômico.
Gás natural como ponte para um sistema elétrico mais confiável
Quando se observa o movimento global da transição energética, o gás natural aparece em uma posição ambivalente. De um lado, é um combustível fóssil, com emissões que não podem ser ignoradas. De outro, tem sido usado como complemento das renováveis em vários países, justamente por oferecer resposta rápida e previsível para momentos em que o vento e o sol não entregam o suficiente.
Um estudo desenvolvido no MIT, The Role of Natural Gas in Future Low-Carbon Energy Systems, mostra que o gás natural emite aproximadamente 45% a 50% menos dióxido de carbono por unidade de energia do que o carvão e estima que a substituição de usinas a carvão por gás respondeu por cerca de 65% da redução das emissões do setor elétrico norte-americano entre 2005 e 2019. Em outras palavras, em contextos bem regulados, o gás ajudou a reduzir emissões enquanto as fontes renováveis avançavam em escala e competitividade.
Esse papel de parceiro da energia limpa, e não de adversário, interessa diretamente ao Brasil. Em um sistema com forte presença de hidrelétricas, mas menor capacidade de armazenamento, e com eólicas e solares ganhando espaço, o gás pode atuar como reserva rápida em momentos críticos, acionado sob demanda em períodos de escassez hídrica ou picos de consumo. Documentos da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) apontam que a expansão da geração a gás tende a se concentrar justamente em configurações flexíveis, capazes de responder a variações de carga e suportar a integração das renováveis.
A literatura internacional, no entanto, alerta para o fato de que esse equilíbrio não é automático. Artigo publicado na revista Renewable and Sustainable Energy Reviews, por Cansu Gürsan e Victor de Gooyert (The systemic impact of a transition fuel, Does natural gas help or hinder the energy transition), analisa cenários em que o gás funciona como combustível de transição, mas também situações em que investimentos excessivos em gasodutos, terminais de gás natural liquefeito e termelétricas criam dependência e atrasam a chegada de um sistema totalmente sustentável.
O risco, conhecido como lock-in tecnológico, surge quando a infraestrutura de gás é dimensionada para operar continuamente, e não como apoio eventual. Nessa configuração, as usinas a gás concorrem com as renováveis, em vez de protegê-las em momentos de baixa geração.
As reflexões acadêmicas dialogam com a visão de Fernando Maia, vice-presidente de Regulação e Relações Institucionais do Grupo Energisa. Para ele, o grande erro seria operar termelétricas a gás como se fossem usinas de base, funcionando ininterruptamente. Isso encarece o sistema e aumenta as emissões sem necessidade. O valor do gás, argumenta, está na capacidade de ser acionado de forma flexível, em sinergia com o avanço das fontes limpas e apoiado por redes inteligentes que entreguem essa energia onde e quando ela é mais necessária.
Débora Oliver reforça esse ponto ao defender modelos de contratação que remunerem a disponibilidade, e não apenas a energia gerada de forma contínua. Na prática, isso significa pagar por usinas prontas para operar em momentos críticos, em vez de manter térmicas ligadas o tempo todo. A executiva lembra que há uma diversidade de arranjos possíveis, desde termelétricas próximas às áreas de produção, com gasodutos curtos, até usinas de ciclo aberto ou combinado, dimensionadas para atender a diferentes perfis de demanda. Essa variedade, diz ela, precisa ser explorada em ambiente competitivo e transparente.
Para que essa convergência funcione, Maia insiste em um ponto: a flexibilidade e a controlabilidade devem ser tratadas como atributos centrais tanto no planejamento elétrico quanto na política de gás. A EPE destaca que o Brasil tem condições singulares para isso, com reservas relevantes no pré-sal e na Margem Equatorial e um novo marco regulatório para o gás natural que amplia a concorrência e fortalece a segurança jurídica.
Em uma matriz que já figura entre as mais limpas do mundo, o gás natural precisa ser visto como ponte estratégica dentro de uma adição energética com inteligência, conceito que prioriza a entrada de novas fontes, em vez da simples substituição abrupta das atuais, e organiza o papel do gás como suporte à expansão renovável, não como freio.
Outra oportunidade que precisa ser melhor explorada pelas nossas políticas públicas é a utilização do gás natural associado ao biometano na descarbonização do transporte pesado (ônibus e caminhões), maior ofensor no nosso inventário de emissões na área de energia. Recentemente estudo da EPE demonstrou que o uso veicular do biometano emite três vezes menos que o veículo elétrico, quando considerado todo o ciclo de vida das fontes. O gás e o biometano juntos podem reduzir significativamente as emissões de gases de efeito estufa e os materiais particulados que representam um sério problema de saúde pública.
Convergência que não sai do papel, barreiras regulatórias e distorções de mercado
Na teoria, gás natural e eletricidade são aliados naturais da transição energética. Na prática, ainda caminham em trilhas paralelas no Brasil. A integração aparece em discursos, planos e apresentações, mas encontra obstáculos quando se traduz em políticas públicas ou modelos de negócio. O resultado é um conjunto de entraves regulatórios e distorções de mercado que mantêm os dois setores distantes e, muitas vezes, transferem custos para o consumidor.
Fernando Maia lembra que o Brasil combina abundância de fontes renováveis com uma estrutura tarifária pesada, onde encargos e subsídios ocupam parte relevante da fatura. No mercado de gás, contratos de longo prazo com cláusulas de take or pay garantem receita aos fornecedores, porém limitam a flexibilidade da demanda e dificultam a adaptação a novos modelos de contratação, mais alinhados com um sistema elétrico que precisa de capacidade firme flexível, e não de geração compulsória.
Mesmo nesse ambiente fragmentado, alguns movimentos começam a sinalizar caminhos possíveis. O Grupo Energisa ingressou no mercado de gás ao adquirir a ES Gás, no Espírito Santo, e ampliou sua presença com a participação majoritária na Norgás, acionista de quatro distribuidoras no Nordeste. Em Cariacica, no Espírito Santo, firmou o primeiro contrato de injeção de biometano em rede canalizada, conectando o potencial de resíduos orgânicos à infraestrutura de gás existente e inaugurando, na prática, um caminho para o gás renovável em escala regional.
Essas experiências mostram como a convergência entre gás e eletricidade pode ir além do discurso. Para que se tornem regra e não exceção, será necessário flexibilizar contratos, alinhar regulações e construir um planejamento integrado que trate os dois setores como partes de um mesmo sistema energético. Um sistema orientado por eficiência, competitividade e sustentabilidade, em que investimentos em redes, geração e infraestrutura de gás conversam entre si desde a origem.
Débora Oliver destaca que isso exige ajustes regulatórios que reconheçam o valor da disponibilidade de capacidade e da integração com renováveis, inclusive para tecnologias como o biometano. Em sua avaliação, a transição energética brasileira será tanto mais consistente quanto mais conseguir somar gás natural, biogás, hidrogênio e renováveis a uma infraestrutura de redes preparada para operar de forma digital, resiliente e próxima do consumidor.
Um novo pacto energético: sustentabilidade, competitividade e segurança
A discussão sobre a convergência entre gás e energia elétrica ganha outra dimensão quando se olha para o redesenho mais amplo da política energética brasileira. A Política Nacional de Transição Energética, aprovada em agosto de 2024 pelo Conselho Nacional de Política Energética, foi descrita pelo Ministério de Minas e Energia como um marco ao reunir sob um mesmo guarda-chuva planos setoriais antes dispersos, com potencial estimado de até dois trilhões de reais em investimentos.
Em agosto de 2024, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, afirmou que a PNTE pode mobilizar cerca de dois trilhões de reais em investimentos verdes e gerar aproximadamente três milhões de empregos em uma década, articulando programas voltados à economia de baixo carbono e à reindustrialização em bases ecológicas. São números que ajudam a dimensionar o tamanho da oportunidade econômica associada à transição energética.
Estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ressaltam que fortalecer cadeias internas ligadas à transição energética, à indústria verde e à inovação tecnológica é condição para que o país deixe de exportar apenas energia ou commodities e passe a exportar soluções de maior valor agregado.
Para Fernando Maia, essa transformação passa por colocar o consumidor no centro das decisões. Ele argumenta que reformas regulatórias, investimentos em redes inteligentes e estratégias de longo prazo precisam convergir para uma rede vista como vetor de qualidade, confiabilidade e acesso, especialmente para as populações mais vulneráveis. Em um cenário de eventos climáticos extremos recorrentes, ampliar o conceito de segurança energética significa ir além da mera garantia de oferta e incorporar resiliência física, digital e social.
Ampliar o acesso à energia, reduzir tarifas e promover inclusão social deixam de ser objetivos periféricos e se tornam condição de legitimidade para a transição. A PNTE, nesse sentido, já incorpora diretrizes explícitas de transição energética justa e inclusiva, que falam em universalização do acesso, preços acessíveis e redução da pobreza energética.
No plano institucional, o Fórum Nacional de Transição Energética tende a desempenhar papel importante como espaço de articulação entre governo, sociedade e setor privado, desde que opere com transparência e capacidade real de influenciar decisões. No cenário internacional, iniciativas como o Pacto Global para uma Transição Justa e Inclusiva, lançado pelo Brasil em contexto de negociações climáticas multilaterais, podem abrir caminho para a atração de recursos em larga escala, especialmente se conectadas a projetos concretos de infraestrutura verde, redes inteligentes e industrialização de baixo carbono.
Se conseguir alinhar estabilidade regulatória, convergência entre gás e eletricidade e integração industrial verde, o país reúne condições para construir um verdadeiro Green Deal tropical, com metas até 2050, etapas intermediárias bem definidas, fundos de financiamento e diplomacia ativa em fóruns como a COP30 e os BRICS.
Nesse desenho, o gás natural deixa de ser apenas combustível de transição abstrato e passa a ocupar um lugar bem marcado, suporte à confiabilidade do sistema elétrico, vetor de industrialização, ponte estratégica para a expansão das renováveis e plataforma de integração com gases de baixo carbono, como biometano e, no futuro, hidrogênio.
Para além de novos planos e compromissos, há de se formular uma visão de futuro em que a convergência entre gás e energia elétrica faça sentido para quem está na ponta, do trabalhador, que hoje sente o peso da conta de luz, até as empresas, que precisam de energia previsível para investir. A transição energética deixa, então, o posto de “promessa distante” e passa a se afirmar como catalisadora de prosperidade, inclusão social e liderança global do Brasil, em um mundo que busca, com pressa, novas formas de produzir e consumir energia.




