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Registros históricos indicam que o quarto faraó da 20ª dinastia egípcia tenha reinado entre 1146 a.C e 1142 a.C. Encontrada por pesquisadores e exposta no Museu do Cairo, no Egito, em 1885, a múmia de Ramsés V trouxe contribuições não só para a história, mas também para a ciência. “Ramsés V é o caso mais antigo documentado de varíola, e as marcas bem visíveis em seu rosto mumificado comprovam isso. A doença também chamada de bexiga, conhecida desde a Antiguidade, era um desastre permanente, provocando sintomas virais banais, como febre e dores musculares, mas com alta mortalidade, matava de 20% a 40% das pessoas contaminadas; isso quando não mutilava ou incapacitava”, afirma o médico e epidemiologista francês Jean-David Zeitoun, no livro “História da saúde humana: vamos viver cada vez mais?”1.
Segundo estimativas, só no século passado, a varíola matou mais de 300 milhões de pessoas no mundo. E, apesar de ter sido uma das doenças mais devastadoras, é a única erradicada do planeta, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS)2. A doença carrega um legado que é tido por muitos especialistas como o mais relevante em termos de saúde pública. É que a tecnologia que se conhece hoje, baseada em estimular a defesa do sistema imunológico contra microrganismos, está intimamente ligada à trajetória da varíola.
O próprio nome dado a essa estratégia – vacinação – tem sua raiz na infecção causada por esse vírus. De acordo com Zeitoun, o fenômeno de imunização, resultado da percepção de que as pessoas que sobreviviam à varíola pareciam nunca recair, já era observado no século 18, o que levou diversas comunidades a adotarem o que ficou conhecido por “variolização”: “Consistia em coletar material biológico, em geral o conteúdo das pústulas de um doente que não sofria de uma forma grave demais, e expor uma pessoa não doente a esse material”3. Contudo, não era possível garantir que a doença sempre se manifestaria de forma menos grave, muito menos que não deixaria cicatrizes pelo corpo.
Uma forma mais segura de proteção contra a varíola viria do médico inglês Edward Jenner (1749 – 1823). No século 18, muitos cientistas sabiam da existência de uma doença animal próxima da varíola, que os ingleses chamavam de cowpox e os franceses de vaccine, pois vinha da vaca (vacca em latim), uma vez que a varíola era uma doença apenas humana, a cowpox ou vaccine era bovina, podendo ser transmitida aos homens pelo contato, especialmente àqueles que faziam a ordenha. Jenner estudou minuciosamente a vaccine até resolver fazer experimentos, primeiro para confirmar a imunidade cruzada entre varíola e vaccine, depois então, testes clínicos de imunização com material biológico da vaccine. Jenner esperou dois anos e repetiu seus ensaios clínicos para confirmar sua hipótese, o trabalho foi publicado em 1798, considerado então o nascimento oficial da “vaccina” e da “vaccinização”.
As vacinas são um marco de inovação científica que alterou profundamente o curso da história humana. Desde que Edward Jenner desenvolveu a primeira vacina até as mais recentes inovações em RNA mensageiro (mRNA), a vacinação tem se mantido no centro dos avanços em saúde pública. Este impacto transcende o controle de doenças infecciosas: as vacinas moldam economias, prolongam a expectativa de vida e são uma peça fundamental no enfrentamento de desafios globais, como pandemias e mudanças climáticas.
A tecnologia que permitiu a erradicação da varíola serviu como base para inovações que continuam a salvar milhões de vidas anualmente. Hoje, novas plataformas, como vacinas de mRNA, e ferramentas tecnológicas, incluindo inteligência artificial, estão transformando a saúde global.
A vacinação no Brasil
Uma pesquisa da professora da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, Myriam Bahia Lopes, e do escritor e historiador Ronald Polito, disponível nos arquivos do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, a vacina contra a varíola é trazida para o Brasil pelo senador do Império e Conselheiro de Estado Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira e Horta, mais tarde nomeado Marquês de Barbacena, em 18044.
Mas é só quase um século depois, já durante o período republicano, que a imunização contra a doença ganha força como estratégia, desenvolvida pelo médico e sanitarista brasileiro Oswaldo Gonçalves Cruz.
“Aqui o Oswaldo Cruz vai produzir essa vacina no instituto Manguinhos, em 1900, para enfrentar a epidemia de varíola que ocorria no Brasil – e particularmente no Rio de Janeiro –com muita frequência. Ele percebe a força da vacina como instrumento de saúde pública e consegue passar uma lei no Congresso, tornando obrigatória a vacinação”, conta o pesquisador do Observatório de História e Saúde, da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Carlos Fidelis Ponte.
A vacinação chegou a ser alvo de questionamentos na Revolta da Vacina (ocorrida entre 10 e 16 de novembro de 1904 na cidade do Rio de Janeiro)5, que foi um movimento muito mais incitado por instabilidades políticas e pelo descontentamento com as reformas urbanas – que na época eram executadas pelo então prefeito Pereira Passos, retirando comunidades inteiras de seus locais de identidade e constituição para os morros afastados. Isso logo foi superado, sendo que poucos anos após o episódio não há mais registros de resistência popular organizada à vacinação empreendida pelos serviços sanitários6.
“Essa campanha alcançou sucesso. A varíola foi a primeira e a única doença até hoje erradicada do planeta inteiro. A poliomielite, por exemplo, nós dizemos que está sob controle, não erradicada. No esforço de erradicação da varíola dentro da campanha mundial, o Brasil foi se preparando, e um dos técnicos que trabalhavam na campanha de erradicação da varíola [década de 1960 e 1970], João Baptista Risi, escreve no relatório dele, por volta de 1968, que talvez no futuro o Brasil pudesse ter um grande programa nacional de imunização. É a partir daí, que em 1973, o Brasil organiza o Programa Nacional de Imunizações. É uma trajetória de avanços e recuos, mas que no âmbito geral é um programa muito exitoso”, explica Carlos Fidelis.
Segundo o Ministério da Saúde, o último caso de varíola notificado no país ocorreu em 1971. No mundo, foi em 1977, na Somália7.
PNI – Uma estratégia nacional
O Programa Nacional de Imunizações (PNI) nasce em 1973 com o objetivo de “coordenar as ações de imunizações que se caracterizavam, até então, pela descontinuidade, pelo caráter episódico e pela reduzida área de cobertura”8. A primeira grande ação do PNI, já nesse formato coordenado pelo país, é a Campanha Nacional de Vacinação contra a Poliomielite, de 1980. A doença foi erradicada no país em 1989, sendo que em 1994 o Brasil recebeu o certificado oficial da Comissão Internacional para a Certificação da Ausência de Circulação Autóctone do Poliovírus Selvagem nas Américas. Também tiveram ações exitosas a eliminação da síndrome da rubéola congênita e do tétano neonatal, além do controle de outras doenças como difteria, coqueluche, caxumba, entre outras. Hoje, o PNI disponibiliza gratuitamente, via SUS (Sistema Único de Saúde), 31 vacinas, 13 soros e 4 imunoglobulinas9.
O presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), Alberto Chebabo, lembra ainda que o sucesso do PNI também se deve ao fato de o Brasil ter instituições nacionais com capacidade técnica para o fornecimento de vacinas.
“Na década de 1970, a gente começa a ter disponíveis algumas vacinas em quantidade importante aqui no país, e vemos que é possível combater algumas doenças que eram muito frequentes e que matavam muito, vacinando um número grande de pessoas. Quanto maior a população vacinada, menor a circulação daqueles agentes infecciosos e maiores as chances de melhorar a sobrevida, principalmente das crianças naquele momento, que eram o principal foco, já que a mortalidade infantil tinha duas grandes vertentes: uma a desidratação e desnutrição, o que melhorou com saneamento básico e acesso a água potável; e outra as doenças infecciosas, sarampo, rubéola, coqueluche, tétano, varíola; doenças que matavam muito até o final do século passado”, observa o médico.
Chebabo reflete, porém, sobre o momento de baixa adesão à imunização que o Brasil enfrenta, sem atingir metas de coberturas vacinais. Entre as causas, segundo o especialista, está a falta de referência da gravidade de doenças que já não estão mais presentes de maneira concreta na rotina da população. “As pessoas não veem mais alguém com paralisia por causa da poliomielite ou alguém morrer por um quadro infeccioso grave por catapora ou mesmo morrer por sarampo, então as pessoas perdem o medo. As vacinas são vítimas do seu próprio sucesso, e essa é uma das preocupações que temos, porque com a baixa cobertura podemos ter o retorno de doenças”, alerta.
Uma mudança de paradigma
O maior legado da vacinação para a humanidade é, sem dúvida, os impactos positivos que essa ferramenta de saúde pública trouxe para a expectativa de vida. Da pré-história até o período pré-industrial, a regra era uma grande insegurança sanitária, com expectativa de vida de até 30 anos. Após esse período, a saúde humana começou a se estabilizar e progredir continuamente.
“A vacinação trouxe uma modificação completa na nossa perspectiva de sobrevivência. As vacinas, assim como o saneamento básico modificaram a nossa perspectiva de vida, o nosso horizonte existencial no planeta. Aumentou a vida média da população em mais de 15 anos. Não tem nada que tenha impactado tanto a existência humana ou a longevidade das pessoas quanto a vacina ou o saneamento básico”, analisa o infectologista e especialista em medicina preventiva e social, Carlos Starling.
Em uma perspectiva mais atual, o médico destaca ainda dois pontos relevantes de contribuição das vacinas: primeiro, do ponto de vista de economia e produtividade, uma vez que as doenças infecciosas geram custos para a sociedade de uma maneira geral; segundo, do quanto as vacinas podem colaborar com a qualidade de vida e prevenção de agravamento de outras condições crônicas.
“Uma doença infecciosa não tem só naquele momento. Por exemplo, a ‘Covid longa’ compromete a nossa capacidade cognitiva, a memória, a musculatura cardíaca, o rim, quer dizer, são doenças que comprometem a qualidade de vida das pessoas e não só na fase aguda. Outro exemplo é a Influenza. Vacinar contra a Influenza é fazer profilaxia de infarto, de Acidente Vascular Cerebral [AVC], porque uma infecção em um paciente idoso que já tem alguma comorbidade – hipertensão arterial, aterosclerose – altera mecanismos de coagulação, aumentando o risco de complicações cardiovasculares e cerebrovasculares”, explica o infectologista.
Para o presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Carlos Fidelis Ponte, a vacina foi e é “um dos mais eficazes instrumentos de saúde pública do mundo e da história”, uma estratégia que vem sendo munida de cada vez mais tecnologia e inovação científica, avanços que serão cruciais para o futuro.
“Outras pandemias virão, porque as fronteiras econômicas estão invadindo nichos ecológicos que estavam equilibrados. Isso tem uma interação com humanos, e esses humanos estão conectados mundialmente. Há muito fluxo de mercadorias e de pessoas circulando no planeta, como não existia antes. Nós vamos enfrentar outras pandemias, mas isso já é sabido pela saúde pública há muito tempo. Tudo isso vai se intensificar e nós vamos precisar de vacinas e que todos se vacinem para nos protegermos mutuamente”, afirma o pesquisador.
Material dirigido ao público em geral. Consulte seu médico.
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