As manchetes atuais tratam o metaverso como um sonho distante, ainda a ser construído, mas se ele for definido como uma rede de mundos virtuais que podem ser habitados, então o seu canto mais antigo já existe há 25 anos. É um reino de fantasia medieval criado para o RPG online chamado Ultima Online, que já resistiu a um quarto de século de concorrência no mercado, turbulência econômica e conflitos políticos. Então, o que este jogo e seus jogadores podem nos dizer sobre a criação dos mundos virtuais do futuro?
O Ultima Online, UO, para os fãs, não foi o primeiro jogo de fantasia on-line a existir. Em 1980, os “multi-user dungeons”, conhecidos como MUDs, disponibilizavam aventuras de interpretação de personagens baseadas em texto, que ficavam hospedadas em computadores universitários conectados via Arpanet. Com o nascimento da World Wide Web em 1991, vieram alguns sucessores mais sofisticados, como Kingdom of Drakkar e Neverwinter Nights, permitindo que grupos de dezenas ou centenas de jogadores matassem monstros juntos em um espaço digital compartilhado. Em 1996, nasceu o gênero “multijogador massivo“, e títulos como Baram e Meridian 59 atraíram dezenas de milhares de assinantes pagos.
Todavia, em 1997, o Ultima transformou a indústria com uma ambição revolucionária: os desenvolvedores queriam simular um mundo inteiro. Em vez de ambientes pequenos e estáticos que eram basicamente cenários de combate, o UO oferecia um reino vasto e dinâmico onde os jogadores podiam interagir com quase tudo, desde frutas que podiam ser colhidas das árvores, até livros que podiam ser retirados das prateleiras e lidos de verdade. Ao contrário dos jogos anteriores, onde todos eram um cavaleiro heroico ou mago, o Ultima criou toda uma sociedade alternativa onde seus jogadores poderiam assumir os papéis de padeiros, mendigos, ferreiros, piratas e políticos.
Talvez o mais importante seja que o Ultima permitia que as pessoas realmente vivessem lá. Na maioria dos seus predecessores, os jogadores ocupavam áreas enquanto estavam conectados, mas não tinham presença persistente quando estavam offline. Um deles, o Furcadia, permitia que os usuários criassem mini-dimensões personalizadas que se conectavam de modo temporário a um espaço compartilhado. Entretanto, no UO, quaisquer coisas que os jogadores construíssem permaneceria no espaço virtual para os outros interagirem, mesmo quando o jogador que as construiu estivesse offline. As pessoas podiam construir chalés ou castelos permanentes em qualquer terreno aberto e decorá-los como quisessem. Elas também podiam formar governos municipais ou apenas receber amigos para socializar tomando cerveja virtual e comendo carne de carneiro. Em suma, o jogo prometia ser um lugar real.
Essa visão refletia a experiência dos desenvolvedores da Origin Systems. Seu fundador, Richard Garriott, passou quase duas décadas produzindo vários jogos individuais Ultima que visavam enfatizar cada vez mais a liberdade dos jogadores e as escolhas morais complexas. O designer-chefe do UO, Raph Koster, e a maioria de seus principais programadores havia começado com os MUDs baseados em texto onde a ausência de gráficos permitia que os servidores se concentrassem em uma modelagem quantitativa mais profunda do que os outros jogos. Há anos, um próspero círculo de entusiastas dos MUDs vinha experimentando simulações complexas de coisas como agricultura, clima e fitoterapia.
Ansiosos para aplicar essas ideias em grande escala, Koster e sua esposa, Kristen (também designer da Origin), criaram um elaborado sistema de ecologia de recursos que daria vida ao mundo do Ultima. A grama cresceria nos campos. Herbívoros, por sua vez, a comeriam. Carnívoros caçariam esses herbívoros. Em vez de apenas ficarem sentados esperando serem mortos por aventureiros, os dragões seguiriam algo parecido com a Hierarquia de necessidades de Maslow: primeiro comida, depois abrigo e, por fim, cobiçar tesouros brilhantes. Isso poderia estimular pensamentos criativos. Em troca de matar monstros saqueadores para proteger uma cidade pacífica, os jogadores poderiam pastorear saborosos cervos. Nos testes alfa, isso funcionou bem, e a equipe percebeu que seus planos cuidadosos e simulação poderosa lhes dariam considerável controle sobre o fluxo do jogo.
O teste beta público, no entanto, foi um rude despertar. Um número inédito de 50.000 pessoas pagou US$ 5 cada pelo acesso antecipado ao jogo, invadindo o mundo cuidadosamente desenvolvido como uma praga de gafanhotos, matando tudo à vista. Os coelhos não viveram o suficiente para serem caçados por lobos, e os dragões foram mortos muito antes de alguém pensar em suas motivações. Foi um colapso ecológico. E com os servidores sofrendo sob o peso dos inúmeros processos realizados pela Inteligência Artificial (IA), que nem eram percebidos pelos jogadores, a equipe relutou, mas destruiu todo o sistema. Como se para enfatizar a perda de controle dos desenvolvedores, perto do final do beta, um jogador assassinou o próprio rei do jogo: o avatar de Richard Garriott, Lord British.
Quando o jogo completo foi lançado em setembro de 1997, um maremoto de jogadores percorreu o reino da Britannia, uma terra dentro do jogo, clicando em tudo e usando as mecânicas do jogo de jeitos que os programadores da Origin nunca haviam antecipado. Logo, um grupo de carpinteiros assassinos observou que móveis de madeira bloqueavam o movimento de outros personagens. Eles barricaram os portões de uma grande cidade com centenas de mesas e armários, e emboscaram qualquer um que tentasse escapar. As vítimas apelaram à Origin, mas Raph Koster defendeu uma solução mais digna de uma simulação. Eles correram para lançar uma atualização que permitia aos jogadores resolverem o problema sozinhos: os machados agora podiam ser usados para cortar móveis.
Já outros comportamentos inadequados focavam em pontos fracos no próprio mecanismo do jogo, que eram muito mais difíceis de corrigir. Delinquentes astutos aninharam milhares de objetos em um só lugar para criar “buracos negros” que travavam o jogo. Alguns exploraram a falta de um sistema de gravidade no UO para flutuar em cadeiras até entrar nas casas dos rivais e saqueá-las.
Tais falhas, combinadas com atrasos extremos e numerosas falhas, provocaram indignação generalizada entre os jogadores. Entretanto, aconteceu uma coisa estranha. Em vez de simplesmente desistir, como a maioria das pessoas faz quando estão insatisfeitas com um produto, muitos ficaram e lutaram por mudança. Em novembro daquele ano, uma grande multidão, tão nua quanto suas tangas codificadas permitiam, se reuniu na capital e fez um protesto bêbado no castelo de Lord British. Para Garriott, esse nível de paixão pelo jogo, mesmo de uma forma raivosa, foi uma legitimação notável.
Delinquentes astutos aninharam milhares de objetos em um só lugar para criar “buracos negros” que travavam o jogo.
No entanto, a Origin estava percebendo que já não era apenas uma empresa de tecnologia. Era um governo. E em pouco tempo, esse governo passou a reger uma população de mais de 100.000 assinantes, maior que a cidade de Charleston, na Carolina do Sul (EUA). Sem as instituições cívicas que existem na vida real, como conselhos escolares e sindicatos, não havia meios para os jogadores expressarem seus desejos e se sentirem ouvidos. Portanto, Koster e a equipe criaram sessões da “Câmara dos Comuns”, onde os cidadãos interessados da cidade virtual poderiam conversar diretamente com os desenvolvedores. A pressão foi feroz. Os magos queriam que os feitiços fossem mais fortes e as espadas mais fracas. Os espadachins queriam o contrário. Não havia como agradar a todos, não havia nenhuma resposta técnica brilhante. O único caminho a seguir foi o trabalho árduo da governança em sua essência: comunicação, compromisso e transparência.
A questão política mais urgente era o que fazer com os assassinatos. O conceito de Garriott para o Ultima Online enfatizava a liberdade de interpretar tanto o bem quanto o mal, de modo que o jogo permitia que os jogadores atacassem, roubassem e matassem uns aos outros. Porém, o reino havia se transformado em um matadouro, com bandos itinerantes de poderosos “assassinos de jogadores” massacrando qualquer um que se desviasse das grandes cidades, cujos guardas controlados por computador eram protetores invencíveis dentro delas, mas ignoravam o crime se estivesse a um passo fora de sua jurisdição. Embora fosse possível ressuscitar os personagens, qualquer coisa que carregassem quando morressem podia ser roubada. Então, quando os novos e curiosos assinantes perdiam tudo em sua primeira viagem à floresta, muitos se desconectavam e nunca mais voltavam.
Mais uma vez, Koster procurou capacitar os jogadores por meio de uma simulação mais rica, estabelecendo um sistema de recompensas que permitia às vítimas colocar preços nas cabeças dos assassinos. Sem se intimidar, os fora-da-lei trataram a lista de recompensas como uma lista de classificação. Várias outras mudanças de regras vieram depois, incluindo um sistema de reputação que rastreava as ações dos jogadores e aplicava penalidades para desestimular a matança. No entanto, os usuários encontraram inúmeras brechas para atormentar uns aos outros de maneiras que o software não notaria.
Um grande desafio para os desenvolvedores foi descobrir o que estava acontecendo de verdade.
Em 2000, Garriott e Koster deixaram a empresa e, com o desgaste dos assinantes ainda em um estado crítico, a Origin optou por uma solução drástica. Ela dividiu o mundo em dois reinos espelhados: o Felucca, onde a violência não consensual permaneceu possível, e Trammel, onde o combate entre jogadores era rigorosamente opcional. A mudança ainda é controversa, com críticos dizendo que ela acabou com a sensação de perigo que tornou o UO único. Mas os usuários votaram por meio de suas ações e dinheiro. A grande maioria dos Britannianos migrou para Trammel quase de imediato. E, com os jogadores livres para escolher qual experiência queriam, as assinaturas aumentaram para 250.000.
Ataque furtivo
Quando o criador do Ultima Online, Richard Garriott, se esqueceu de religar a invulnerabilidade do seu avatar, Lord British, durante o teste beta de 1997, um jogador chamado Rainz o assassinou com um feitiço de fogo mágico. CORTESIA DE BROADSWORD / ELECTRONIC ARTS
Perigo Mortal
Matar um dragão é um desafio digno, mas os inimigos mais perigosos são os outros jogadores. CORTESIA DE BROADSWORD / ELECTRONIC ARTS
Festa de fim de ano
Para comemorar o Natal em 2002, um grande encontro no jogo ocorreu. CORTESIA DE BROADSWORD / ELECTRONIC ARTS
Faça você mesmo
O UO permite que os jogadores construam casas personalizadas, como este castelo de 2018 feito por Dot Warner. CORTESIA DE BROADSWORD / ELECTRONIC ARTS
Uma crise econômica também estava desabrochando junto a epidemia de assassinatos dos jogadores. O sistema de recursos do jogo começou como um circuito fechado, com quantidades fixas de ouro e matérias-primas disponíveis. Os servidores gerariam esses bens para uma variedade de trolls, zumbis e homens-lagarto que apareceriam em florestas selvagens ou nas profundezas de masmorras sujas. Ao matá-los, os aventureiros poderiam coletar tesouro. Os recursos que os jogadores consumiam ou o ouro que gastavam em lojas administradas por IA voltariam para um reservatório abstrato do qual o servidor faria retiradas à medida que novos monstros surgissem. Todavia, esse sistema quebrou quase imediatamente pelo fato dos jogadores acumularem tudo o que podiam colocar suas mãos sem nem pensar, evitando assim que novos tesouros aparecessem. Mas, quando a Origin mudou sua política e desligou o ciclo, os tesouros dos monstros inundaram a economia, acarretando uma hiperinflação.
Enquanto isso, jogadores estavam vendendo suas riquezas no jogo por dinheiro real em um novo site de leilões chamado eBay. A princípio, um dólar americano equivalia a cerca de 200 moedas Britannianas, o que tornava essa moeda imaginária mais valiosa do que a lira italiana. Cerca de um ano depois, um dólar poderia comprar mais de 10.000 moedas. Com o crescimento do mercado de bens virtuais, “farmar gold” (o processo de reunir grandes quantidades de moedas virtuais) virou um grande negócio no mundo real, pois empresários na China ou no México pagavam salários baixos para moradores locais trabalharem o dia todo no jogo com este objetivo.
Outra fonte de inflação foi o “duping“, exploits que enganavam os servidores para duplicar itens. A Origin fez o seu melhor para corrigir os erros e eliminar as duplicatas, mas um número suficiente deles entrou em circulação para que o preço do ouro continuasse despencando. Quando foi descoberto que alguns “Game Masters” de serviço ao cliente (funcionários responsáveis pelo gerenciamento e moderação do jogo) estavam conspirando com jogadores, o produtor Rich Vogel criou uma unidade de assuntos internos para monitorar os jogadores.
Um grande desafio para os desenvolvedores foi descobrir o que estava acontecendo de verdade. Os governos do mundo real precisam de enormes burocracias para reunir informações sobre as suas economias. Era de se imaginar que isso não seria um problema em mundos virtuais, onde tudo é feito de informação. Mas é. No lançamento, a maioria das estatísticas de riqueza dos jogadores foi enterrada bem longe do alcance, em arquivos de backup do servidor no formato binário. Sem métricas de dinheiro abrangentes, Raph Koster passou a acompanhar a inflação pelos preços do eBay. Foram muitos meses frenéticos até criar ferramentas de análise e integrá-las em painéis que pudessem respaldar a tomada de decisões.
À medida que a situação se acalmou, a Origin percebeu que precisava de “escoadouros de ouro” melhores, ou seja, mecanismos para combater a inflação retirando o ouro da economia do UO. Tributar a riqueza acumulada teria causado uma revolta dos assinantes. A venda de armas superpoderosas para personagens ricos poderia ter sugado ouro suficiente para resolver a inflação, mas teria criado uma classe de exterminadores invencíveis e destruído o equilíbrio do jogo.
A solução foi engenhosa: símbolos de status que eram apenas estéticos. Pelo preço de um pequeno castelo, a elite da Britannia podia comprar tintura de cabelo neon e impressionar os plebeus com um moicano verde. No entanto, essas medidas eram apenas paliativas. Em 2010, o ouro do UO estava em 500.000 por dólar.
A essa altura, concorrentes como World of Warcraft já haviam atraído a maioria dos jogadores do UO. Contudo, enquanto a maioria de seus semelhantes fechou, o Ultima Online se estabilizou e mantém um núcleo robusto de usuários (talvez cerca de 20.000) mesmo um quarto de século após sua estreia. Por que isso?
Os assinantes atuais dizem que o senso de identidade e investimento que o UO oferece são incomparáveis. Graças em parte aos escoadouros de ouro e ao conteúdo das expansões, ele supera em muito alguns títulos contemporâneos em opções de personalização de roupas e moradias. Como resultado, a estética original de era medieval do jogo se transformou em algo mais peculiar atualmente. Ao viajar pela terra nos dias de hoje, por exemplo, você verá homens-gárgula usando óculos escuros e ninjas em armaduras fluorescentes montando aranhas gigantes. Aldeias medievais pitorescas deram lugar a mansões extravagantes. Todavia, mesmo que essa confusão desenfreada prejudique a imersão dos jogadores, tudo pertence a eles.
Os designers não conseguem prever todas as formas como os usuários podem subjugar um sistema.
No entanto, o maior fator para manter a comunidade viva são os relacionamentos e as memórias que os jogadores constroem juntos. Sim, outros jogos têm gráficos melhores e características mais chamativas. Mas, onde mais um amigo que vive em um continente distante no mundo off-line pode visitar para comer uma torta de peixe e admirar a pintura rara que vocês roubaram juntos durante o governo Clinton?
Muitas vezes, esse apego é bastante pessoal. Muitos jogadores construíram casas virtuais com pais ou amigos que depois morreram na vida real, e mantê-las é uma maneira de se sentirem conectados às pessoas que perderam. Alguns conheceram seus cônjuges da vida real em aventuras noturnas nas masmorras. Em suma, Britannia realmente se tornou um lugar, e as pessoas permanecem lá por todas as razões pelas quais apreciamos lugares do mundo real.
A nostalgia é tão forte que alguns fãs fiéis do Ultima fizeram engenharia reversa do código-fonte e criaram servidores piratas gratuitos, promovendo uma experiência “pura” que recaptura o espírito dos primórdios do jogo. Eles já abrigam milhares de ex-jogadores. Um serviço feito por fãs permite que as pessoas joguem por meio de navegadores da web. Outro projeto visa incorporar realidade virtual ao UO.
À medida que as tecnologias de metaverso tornam esses mundos cada vez mais acessíveis, é fácil imaginar que Britannia pode virar uma espécie de local de peregrinação, onde o mais brilhante potencial dos mundos simulados se realizou pela primeira vez e onde seus obstáculos mais difíceis foram superados pela primeira vez. Seria bom se os que estão construindo a próxima geração desses mundos aprendessem com a história do Ultima Online.
Por um lado, como a Origin descobriu, os designers não conseguem prever todas as formas como os usuários podem subjugar um sistema — manter as coisas funcionando é uma guerra sem fim que requer improvisação e flexibilidade. Dar às pessoas mais liberdade torna esta tarefa ainda mais difícil, mas também estimula a sensação de investimento que lhes permite criar raízes.
Além disso, quando os usuários habitam um mundo virtual, sua relação com os seus criadores é fundamentalmente política. É tentador acreditar que os problemas da comunidade podem ser resolvidos apenas com engenharia inovadora, mas nenhum algoritmo inteligente consegue suprir a necessidade de uma governança sábia. Assim como na política do mundo real, os cidadãos respondem a incentivos e é difícil conter o comportamento antissocial sem consequências indesejadas.
Em última instância, são as ligações humanas que sustentam esses mundos, não os enfeites tecnológicos. É preciso humildade para os desenvolvedores reconhecerem que o conteúdo que eles produzem não é o núcleo da experiência. Então, quando novos jogadores peregrinos chegarem em Britannia, espera-se que muitos dos seus cidadãos fundadores ainda estejam lá para os acolher.
John-Clark Levin é autor e jornalista que aborda termas relacionados a tecnologia, segurança e política.