Da Mona Lisa à Ailya Lou: beleza, tecnologia e saúde mental
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Da Mona Lisa à Ailya Lou: beleza, tecnologia e saúde mental

A percepção sobre a beleza é mutável, e inovações na estética médica podem trazer impactos positivos em uma sociedade mais atenta e crítica ao consumo.

O que você encontrará neste artigo:

A identificação da beleza
Transformação em curso
Concurso de beleza para modelos criadas com IA

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Roupas sóbrias vestem um corpo que alguém poderia classificar como “avantajado”. O decote ainda que comportado sugere seios fartos. Sobre a pele extremamente branca caem os cabelos castanhos protegidos por um véu transparente. Os olhos cor de mel estão fixos e serenos. As bochechas redondas assumem um meio termo entre estarem puxadas por lábios sorridentes e inteiramente descansadas na face séria. Afinal, é no sorriso enigmático que reside um dos muitos mistérios que tornou a Mona Lisa tão instigante e, claro, relevante como obra de arte, baseada em distintas razões históricas e artísticas.

A criação de Leonardo da Vinci traz todos os aspectos do padrão de beleza da época renascentista. Em releituras ao longo do tempo, a modelo do século XVI ganhou inúmeras formas, roupas, cabelos, tons e até mesmo comportamentos diferentes. A clássica Gioconda talvez não fizesse sucesso atualmente, já que não parece possível pensar em beleza dissociada de perspectivas cultural, histórica e étnica. Mas, afinal, existe um conceito para o que é belo?

“A identificação da beleza é um processo totalmente intuitivo. A gente olha e avalia imediatamente se aquela pessoa é bonita ou não, mas quando a gente tenta definir isso é muito mais complexo”, argumenta a dermatologista Lilia Guadanhim. “Viemos de um passado não muito distante onde se criava quase um transtorno dismórfico¹ em que a pessoa se olhava no espelho e não queria ter aquele cabelo, não queria ter aquela boca, gerando um problema de autoestima e autoimagem. Ser a boneca Barbie é incompatível com a forma humana, porque ninguém é daquele jeito, e aí criamos uma sociedade insatisfeita”, reflete a médica.

Coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social da PUC-Rio, a professora Joana Novaes é pesquisadora do tema e identifica no modelo econômico ocidental a construção que foi feita da forma de se relacionar com a beleza que ainda permeia a sociedade.

“Beleza é uma moeda de troca, é um capital valioso. Não é possível pensar beleza fora de uma perspectiva de classe e de poder, portanto, dissociada da sua dimensão de exclusão social. Você tem padrões estéticos, como o ideal vitoriano ou renascentista, que mudam dependendo das realidades de cada momento. O que não existia antes era essa associação intrínseca entre a moralidade e a performance, quer dizer, fazer uma avaliação moral do sujeito a partir da aparência. Isso é típico da sociedade contemporânea”, analisa a psicóloga.

Transformação em curso

Ao mesmo tempo em que a indústria cultural reforça estereótipos, recentemente ela vem adotando um posicionamento de denúncia e questionamento. Mais acesso e mais canais de informação tiveram grande contribuição nesse aspecto, e as redes sociais têm exercido papel importante no que a pesquisadora classifica como ações afirmativas.

“Beleza virou uma pauta dos direitos humanos. Quando falamos da possibilidade de ser e de existir, podemos falar de racismo, de misoginia, de gordofobia, mas estamos falando sobre grupos se insurgindo contra a norma. Uma sociedade em rede se organiza muito mais por semelhanças do que por diferenças, então criou-se toda uma facilitação para que esses grupos se organizassem”, observa a professora.

Uma mudança na forma de se relacionar com a estética é relatada pela dermatologista Lilia Guadanhim, tanto por parte da sua atuação profissional quanto na perspectiva do paciente. “Hoje a grande beleza da estética é você se olhar em uma fotografia e não se estranhar, você se olhar no espelho e se sentir bem e bonito, mas não tentando se parecer com outra pessoa. O que eu costumo combinar com os meus pacientes é: eu estou aqui para ajudar você a se sentir o melhor que você consegue, mas com as suas próprias características”, explica a médica.

Outra constatação feita pela médica tem ligação com atributos emocionais e a percepção estética. Segundo Lilia, a maior parte dos pacientes busca estar bem consigo, abandonando o discurso da beleza e da juventude. Essa percepção é explorada na iniciativa Going Beyond Beauty, composta por 27 projetos de pesquisa realizados para levantar os principais objetivos e motivos para a busca por um tratamento estético². Os dados de mais de 54 mil pacientes de 17 países diferentes foram estratificados em quatro arquétipos distintos com base em fatores motivadores, objetivos estéticos, solicitações iniciais, oportunidades e desafios de tratamento, e validados por meio de pesquisas on-line, entrevistas individuais e grupos focais realizados com pacientes.

Lilia compartilhou a história de uma paciente de 50 anos de idade que teve uma série de perdas na vida após a morte do marido, vítima de um AVC (Acidente Vascular Cerebral). Ao participar de um estudo, a paciente foi contemplada com alguns procedimentos estéticos na face, e o que o acompanhamento dela demonstrou foi um impacto positivo no seu bem-estar psicossocial: “Ela floresceu. Dava para ver como os últimos anos tinham sido pesados para ela, e de repente a vida melhorou. A aparência refletir o seu estado emocional é muito interessante”.

Segundo o estudo “O tratamento estético impacta positivamente na percepção social: análise dos indivíduos do estudo”³, publicado na revista científica Aesthetic Surgery Journal, tratamentos faciais minimamente invasivos tiveram resultados que ultrapassaram a melhoria da aparência física, influindo nas interações e percepções sociais, e em última análise na autoestima.

A pesquisa contou com a participação de dois mil voluntários que participaram de um estudo on-line com o intuito de capturar a percepção social do observador sobre pacientes pré e pós-tratamento estético facial. Os dados divulgados mostram que as percepções relacionadas a traços de caráter positivo, como “saudável” e “mais acessível”, foram superiores a outros meramente físicos, como “mais jovem” ou “mais atraente”.

Miss IA

Em abril deste ano, uma plataforma de criação de conteúdo com Inteligência Artificial (IA) anunciou que faria o primeiro concurso de beleza para modelos criadas com IA. O World AI Creator Awards analisou mais de 1,5 mil figuras com foco em critérios como realismo e influência nas redes sociais. Entre as 10 finalistas, está uma criação brasileira: Ailya Lou é uma mulher preta miscigenada, com a boca carnuda e olhos puxados que remetem a ancestrais orientais. Ela é jovem, magra, sensual, tem os dentes alinhados, a pele sem imperfeições. E não é real! O concurso reconhece o trabalho criativo de quem cria essas figuras, contudo, a relação que muitas pessoas podem criar ao se compararem com essas imagens pode ser prejudicial, alerta a cirurgiã plástica Sheila Mulatti.

“O bombardeio de imagens que não são reais é recorrente no consultório. É preciso ter cuidado para isso não nos pressionar a achar que aquilo é alcançável, que aquela imagem é possível. É importante refletir ainda sobre os filtros das redes sociais. É difícil resistir a melhorar a nossa aparência, mas é preciso lembrar — principalmente para as gerações mais jovens — que isso não reflete a realidade, porque na hora que você se olha no espelho você tem poros, tem manchas, vasos. Isso faz parte de uma pele normal”, analisa a médica.

Formas opressoras de encarar padrões estéticos sempre existiram historicamente, independentemente das ferramentas tecnológicas disponíveis em cada época. Quem atribui o bom ou mau uso desses recursos é a própria sociedade. Entretanto, se há um receio sobre a maneira pouco crítica como se consome beleza nas redes sociais. Por outro lado, foi o avanço tecnológico e científico que permitiu a chegada dos tratamentos inovadores disponíveis hoje.

“A medicina regenerativa é um termo em alta quando se fala em tratamentos para qualidade de pele, por exemplo, aqueles voltados ao estímulo da produção de colágeno. Temos também o advento da categoria de produto híbrido, que contempla os benefícios do ácido hialurônico e do bioestimulador de colágeno em um único produto. Vemos ainda instrumentos que auxiliam a prática, como as câmeras 3D, que são câmeras que nos permitem ver detalhes do rosto e da pele dos pacientes, muitas vezes difíceis de captar a olho nu. É possível reconstruir a face, comparar o antes e depois de forma muito fidedigna, mostrar o quanto de volume se colocou em determinada área, quanto se reduziu em outra área, a diferença nas manchas, nos vasos. É uma ferramenta fantástica!”, avalia a cirurgiã.

¹Kataoka, Alexandre, et al. “O Transtorno Dismórfico Corporal E a Influência Da Mídia Na Procura Por Cirurgia Plástica: A Importância Da Avaliação Adequada.” Revista Brasileira de Cirurgia Plástica, vol. 38, 19 May 2023, p. e0645, www.scielo.br/j/rbcp/a/RnRbXNdhYQKvyzzCghRkRJr/?lang=pt, https://doi.org/10.5935/2177-1235.2023RBCP0645-PT.
²Liew, Steven, et al. “Understanding and Treating Different Patient Archetypes in Aesthetic Medicine.” Journal of Cosmetic Dermatology, vol. 19, no. 2, 25 Nov. 2019, pp. 296–302, https://doi.org/10.1111/jocd.13227.
³Dayan, Steven, et al. “Aesthetic Treatment Positively Impacts Social Perception: Analysis of Subjects from the HARMONY Study.” Aesthetic Surgery Journal, vol. 39, no. 12, 15 Sept. 2018, pp. 1380–1389, https://doi.org/10.1093/asj/sjy239.
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