Artes e Ciências: a quintessência da tecnologia
Humanos e tecnologia

Artes e Ciências: a quintessência da tecnologia

O significado da tecnologia é tão amplo quanto o arco da trajetória humana.

Em 1980 ganhei de presente o álbum do Herbie Hancock “Mr Hands” que trazia escrito na ficha técnica “Computer (Modified Apple II Plus Microcomputer)”.  Foi a primeira vez que li a palavra “computador” associada à música. Ele, o computador, estava ao lado de outros instrumentos como sintetizadores, piano, piano elétrico, vocoder e bateria eletrônica. Fiquei fascinado. Ainda mais sendo usado pelo meu herói musical.

Mostrei o encarte para todo mundo: minha mãe, seus músicos, produtores e engenheiros de som. Fiquei tão excitado que ela falou: “Seu sonho é morar com o Flash Gordon”. Dias depois, levei o vinil ao estúdio da EMI onde mostrei ao engenheiro-chefe responsável pela gravação do último trabalho de Elis. Ele sorriu e vaticinou: “Isso é tecnologia, João. Tudo aqui nessa sala é. Os gravadores, os fones, os microfones, a máquina de gravação, os teclados…”.

Emudeci. Passei meus olhos por tudo. Escaneei o ambiente. Talvez esse tenha sido o dia em que encontrei, inconscientemente, o meu lugar no mundo: o estúdio, a maternidade da música.

De volta pra casa, abri o dicionário e procurei a palavra “tecnologia’. Lá estava ela, do grego “techne”, significando arte, habilidade, conhecimento artesanal. Desde esse instante, artes e ciências estavam reunidas na minha cabeça — sobretudo em um momento histórico onde ainda não havia entre os termos “tecnologia” e ‘informática’ o vínculo quase obrigatório e restritivo.

Compreendo a associação frequente dessas palavras pelo seu uso recorrente e seu papel contemporâneo central. A ciência computacional tem sido matriz de muitas mudanças aplicadas a quase todas esferas da sociedade, seja no nível físico dos dispositivos, seja no nível virtual das programações ou nas relações humanas.

Mas o significado de “tecnologia” proposto inicialmente pelos gregos é tão amplo quanto o próprio arco da trajetória humana. E muitas vezes, quando triunfa, ela se torna invisível. Uma cadeira, um copo, um chuveiro, um fogão ou uma escada raramente são associados a ideia de tecnologia. Assim como a roda, a eletricidade, o astrolábio, a janela — sim, na mais antiga cidade encontrada em escavações (Çatalhöyük/7100 A.C.) as casas não tinham janelas. Um dia foram inventadas.

Voltando aqui para o estúdio — um local quase sem janelas, aliás —, sigo envolto em artes e ciências, em múltiplos tipos de tecnologia. O propósito maior desse lugar é registrar emoções, sentimentos e ideias, extrapolando a própria existência das pessoas envolvidas, eternizando-as. E para isso utilizamos recursos analógicos e digitais; algoritmos e campos eletromagnéticos; transdutores (microfones e caixas de som); tambores e samplers com Inteligência Artificial. Ar refrigerado e vasos sanitários também são tecnologias fundamentais.

A colaboração nos trouxe aqui. Agrupamos para nos proteger, pra compartilhar comida, calor, conhecimentos. Cada invenção está apoiada em muitas outras descobertas, tem as digitais de muitas pessoas. Por exemplo: só falamos em código binário porque o 0 e o 1 foram inventados há milênios. É uma odisseia coletiva.

Somos mais do que mercadorias ou suportes de informações. Somos um milagre químico que sonha.


Este artigo foi produzido por João Marcello Bôscoli, empresário e produtor musical brasileiro, e colunista da MIT Technology Review Brasil.

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