Uma pesquisa divulgada em 2019, feita pela Hootsuite – sistema norte-americano especializado em gestão de marcas na mídia social – em parceria com a We Are Social – agência de marketing digital especializada em mídias sociais, mostra que os brasileiros passam em média nove horas e 20 minutos conectados diariamente. Esse resultado coloca o Brasil como o segundo país que passa mais tempo na internet, nós ficamos atrás apenas das Filipinas. Se formos mais adiante e levarmos em consideração que os brasileiros dormem em média sete horas e 36 minutos por dia, temos o resultado da equação: mais da metade do tempo em que estamos acordados ficamos conectados.
Essa sociedade de hiperconectados só foi possível graças a popularização da internet. Os benefícios são inúmeros: nos comunicamos com mais facilidade, temos mais acesso à informação, aprendemos novas coisas, dentre outras possibilidades. Por outro lado, os excessos podem trazer consequências. Nesse ponto, vamos recorrer a um conceito explicado por Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano que trouxe importantes conceitos sobre o indivíduo nos tempos atuais, em sua obra “Sociedade do Cansaço”.
O filósofo explica que com o avanço das tecnologias digitais, especialmente nos anos 70, a nossa sociedade começa a passar por algumas mudanças: estamos sempre conectados, fazemos muitas atividades (algumas até simultâneas) e nos tornamos multitarefas. Com a sensação de uma realidade acelerada, surge o que o estudioso chama de Sociedade do Desempenho. Esse nome já diz muita coisa por si só. Na Sociedade do Desempenho fazemos auto cobranças, somos exigentes conosco na vida pessoal e no trabalho e estamos sempre perseguindo metas e boas performances, às vezes, até nos sentimos mal por passar um tempo ocioso. Com tudo isso, podem surgir doenças como síndrome de burnout, ansiedade e depressão.
Assim, a Sociedade do Cansaço surge como consequência da Sociedade do Desempenho. Uma sociedade que se demonstra cansada de tantas tarefas, tanta hiperconectividade e tanta necessidade de performar bem.
Byung-Chul Han ainda alerta que a partir dos anos 2000, pode-se observar uma sociedade com comportamentos mais narcísicos, em que a auto contemplação individual é reafirmada. É fácil perceber isso. Se deslizarmos no feed das redes sociais (em especial o Instagram) podemos notar que as selfies individuais estão em massa nessa mídia. Uma busca frenética por likes, por seguidores e por interação. Quem nos alertava muito sobre esse fenômeno era Zygmunt Bauman.
Zygmunt Bauman foi um filósofo polonês que se dedicou a estudar as relações sociais na pós-modernidade. Ao constatar a dificuldade do sujeito de criar vínculos e manter relações mais duradouras, Bauman cunhou o conceito de liquidez. Sobre isso, o filósofo é um nome importante quando falamos em analisar as relações que ocorrem por meio das tecnologias digitais. Claro, a comunicação muito se beneficiou com a consolidação das tecnologias. Aplicativos de mensagens e redes sociais estão no topo dos mais baixados pela população. Uma pesquisa realizada pela App Annie, mostrou que os mais baixados este ano foram: TikTok, WhatsApp e Facebook. Eles facilitam a vida, promovem a distração, “encurtam” a distância e nos ajudam a manter conexão com pessoas por toda parte do mundo e isso tudo é muito positivo! Mas, como consequência as relações sociais correm o risco de se tornar mais “líquidas” e voláteis.
Ainda recorrendo a Bauman, temos outro interessante ponto de análise: em um mundo em que tudo é filmado, fotografado e compartilhado, onde fica a nossa privacidade? Assim surge o conceito de Vigilância Líquida. Câmeras de segurança, dados compartilhados na internet, drones e mídias sociais são alguns dos meios usados para essa chamada Vigilância abordada por Bauman em diálogo com o sociólogo David Lyon.
Para os estudiosos, estar nas redes sociais, compartilhar os feitos e o dia a dia, acaba tornando-se uma obrigação. Assim vemos que os pesquisadores compactuam com Byung-Chul Han no que diz respeito ao excesso de contemplação individual apontado em sua obra.
Em todo esse processo de vigilância, Zygmunt Bauman e David Lyon são certeiros em pontuar que a tecnologia e a internet não são as culpadas desse fato (se é que podemos falar em algum culpado). Com isso, os autores observam que os computadores e a internet não são responsáveis pelo que é colocado nos meios de comunicação digitais e mídias.
Sobre esse assunto quero ir um pouco mais além, pois foi-se o tempo que os dispositivos de acesso à internet limitavam-se aos smartphones, computadores, TVs e tablets. Hoje, diversos aparatos que normalmente não estariam conectados à internet, já contam com essa possibilidade. Isso é o que chamamos de “Internet das Coisas”: dispositivos conectados à internet que podem ser controlados de diversas partes do mundo. É possível que você veja a sigla IoT (do inglês, Internet of Things) para falar sobre o assunto também. Com processamento de dados, análises e tratamento, é possível entregar mais comodidade e conforto para os consumidores por meio da Internet das Coisas, é aí que entra o Big Data, para otimizar essa experiência e melhorar os resultados.
Big Data é uma definição do início dos anos 2000. Doug Laney, integrando o time da Gartner Group definiu o conceito a partir dos três Vs: Volume, Velocidade e Variedade. O volume refere-se exatamente a quantidade de dados que são processados, já a velocidade está relacionada a rapidez em que esses dados são trocados. A variedade, como o próprio nome já diz, tem a ver com os diversos tipos de dados que existem atualmente: fotos, vídeos, mensagens etc., ou seja, os dados não-estruturados.
Há duas décadas esses eram os tópicos chave do Big Data, mas hoje, já se fala em 10 Vs. Juan Pablo Boeira que é docente universitário, explica que cabe mais de 7 Vs em torno do conceito de Big Data: Variabilidade, Veracidade, Validade, Vulnerabilidade, Volatilidade, Visualização e Valor. Desse modo, essencialmente falando, Big Data refere-se a análise e gerenciamento de um grande volume de dados estruturados ou não. Por esse motivo, o Big Data é essencial para trabalhar a Internet das Coisas. Podemos ver diversos exemplos no nosso dia a dia: aplicativos de mobilidade urbana, sistemas de segurança e iluminação inteligente acontecem graças ao Big Data e a Internet das Coisas.
É importante lembrar que para analisar os dados e entregar a melhor experiência para o usuário, sistemas e plataformas precisam ter acesso às informações dos usuários. Na internet, o exemplo mais frequente que temos hoje é o uso de cookies. A cada visita regular a um site são criados pequenos arquivos com informações sobre o acesso, que são salvos no computador de cada usuário e ajudam a personalizar a experiência de uso e consumo. Isso pode ser benéfico para quem navega, de modo que esse indivíduo poderá acessar informações que se relacionam mais com seus gostos e interesses.
Mas com isso, voltamos ao que Zygmunt Bauman nos alertava sobre o excesso de vigilância, já que repassamos nossos dados nessa troca. Porém, não estamos à deriva nesse mar de informações da internet. Em 2018, a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais) foi sancionada no Brasil e no mês passado, em setembro ela entrou em vigor. A LGPD tem o objetivo de garantir a privacidade dos dados pessoais dos usuários. Desse modo, a coleta, o armazenamento e a comercialização de dados só será feita com autorização. As empresas que não se adequarem serão penalizadas.
As medidas que resguardam a privacidade dos consumidores são essenciais para navegarmos com segurança e construir uma relação ainda mais transparente. Afinal, isso é assunto muito sério, principalmente quando se trata de tecnologia. A internet das coisas também abre algumas brechas de ataques maliciosos, em dispositivos que apresentam vulnerabilidade. Em 2018, o Brasil foi alvo de uma invasão que aconteceu principalmente por meio de roteadores, 200 mil equipamentos foram invadidos. É importante dizer que a partir desses ataques, diversas empresas estão revendo a segurança dos dispositivos fabricados e realizando testes diversos. Com isso, percebemos que é preciso investir ainda mais em segurança digital, tanto fabricantes quanto usuários precisam ficar atentos a isso.
Apesar disso, não podemos nos privar de utilizar os recursos e benefícios trazidos com a Internet das Coisas e o Big Data. Aliás, você se lembra que lá no passado, o objetivo pelo qual a internet foi criada era exatamente a segurança: proteger de forma mais eficaz as informações e comunicados dos EUA, que temiam um ataque nuclear.
Com segurança, é possível usufruir de forma positiva dos benefícios da tecnologia. No campo da telemedicina, por exemplo, já houve diversos avanços por conta da IoT, as cirurgias a distância já são uma realidade. Além disso, por meio de tecnologias torna-se possível a construção de Cidades Inteligentes, que são aquelas que usam recursos eletrônicos para coletar dados e utilizá-los para melhorar a vida na cidade, diminuindo gastos, promovendo a sustentabilidade e otimizando o tempo.
As tecnologias digitais também são fundamentais para transmitir informações em uma velocidade praticamente instantânea. As notícias chegam rapidamente e podemos fazer previsões e ser mais assertivos em nossas escolhas. Com a internet, não só os grandes portais de notícias são porta-vozes de informações, qualquer sujeito que tenha acesso a um celular e em uma rede social pode ser protagonista e responsável por difundir um acontecimento. Isso tem impactos positivos, já que dessa forma é possível dar voz para diversos grupos da sociedade e tornar os meios de comunicação mais democráticos. No entanto, o outro lado da história é quem nem todos os propagadores da informação tem o cuidado de verificar as fontes do que está sendo compartilhado. É indispensável dizer que há quem se dedique a construir essencialmente informações falsas, as Fake News.
A Sociedade do cansaço de Byung-Chul Han se manifesta também neste ponto, afinal somos atingidos por uma infinidade de informações diariamente e o excesso se evidencia mais uma vez. Sobre as Fake News foi possível observar nos últimos tempos um aumento da propagação dessas informações, por conta da pandemia do Covid-19, uma verdadeira Infodemia. Um estudo divulgado pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) mostrou que de todas as mensagens falsas, 71,4% delas foram transmitidas pelo Whatsapp. Mas, foi a própria Fiocruz que também lançou um aplicativo que permite denúncias de notícias falsas nos meios de comunicação. Com o aplicativo “Eu Fiscalizo” é possível também enviar denúncias sobre conteúdos de violação dos direitos humanos ou nudez e violência em horário inapropriado.
Mas então, como nos beneficiar das vantagens da tecnologia sem ficarmos reféns a Sociedade do Cansaço apontada por Byung-Chul Han?
O fato é não podemos deixar de usufruir dos avanços diversos que a tecnologia proporciona, temos ganhos em várias áreas: educação, agronegócio, medicina, mobilidade, dentre outros. Precisamos a cada dia ter uma mentalidade mais voltada para a transformação digital, assim podemos transformar processos de empresas variadas e setores da sociedade, criando assim uma “Sociedade de Oportunidade”. Além disso, é preciso sempre rever os dois lados da história: existem impactos que a priori podem ser considerados pontos desfavoráveis, mas por outro lado, eles estão sendo frequentemente revisados, a fim de otimizar e desenvolver novos mecanismos e soluções, como os exemplos citados anteriormente. O ponto de equilíbrio é não esquecer que a tecnologia foi feita por pessoas e para pessoas. Devemos avançar, mas sem esquecer da nossa humanidade, assim podemos construir pontes sólidas para o futuro por meio da tecnologia.
Gustavo Caetano é CEO da Sambatech