A pandemia do coronavírus é um divisor de águas em relação aos cuidados da saúde mental
Humanos e tecnologia

A pandemia do coronavírus é um divisor de águas em relação aos cuidados da saúde mental

Alterações regulatórias e ansiedade aumentada pelo isolamento estão levando a um boom no uso de aplicativos de saúde mental e terapia à distância – mas eles são bons o suficiente?

Há duas semanas, Angela foi ao consultório de seu terapeuta para uma sessão regular. Esta semana, a consulta foi feita por uma chamada de vídeo segura.

“Foi a primeira vez que ouvi falar de terapia online,” diz ela. Ela é ansiosa, e isto tem aumentado com as terríveis notícias do coronavírus. “Ainda não caiu a ficha ou ainda não compreendemos direito” que esta é a nova realidade dela, ou melhor dizendo, nossa.

O surto de coronavírus forçou milhões de nós a nos isolarmos, às vezes até na mesma casa, daqueles com quem nós interagimos todos os dias: colegas de trabalho, amigos, familiares, animais de estimação. Combine isso com o medo existencial e um futuro desconhecido iminente, e é compreensível que a ansiedade seja alta.

Não é de se admirar, então, que os aplicativos de saúde mental – que vão desde meditação e bem-estar como Headspace e Sanvello, até plataformas de terapia online como Talkspace – tenham aumentado em uso.

A diretora científica da Headspace, Megan Jones Bell, diz que houve um aumento crescente no número de pessoas que baixam meditações para aliviar o estresse e a ansiedade. A empresa lançou um conjunto gratuito de meditações chamado “Weathering the Storm” (em português, “Resistindo à tempestade”), feito especificamente para lidar com a crise.

O aplicativo de saúde mental Sanvello respondeu de forma similar disponibilizando o seu conteúdo premium gratuitamente. Monika Roots, chefe médica da Sanvello, diz que o sistema de monitoramento de humor do aplicativo começou a detectar “menções” às palavras “COVID-19” ou “coronavírus” em 22 de janeiro, dia em que o presidente Trump disse à CNBC que o vírus estava “totalmente sob controle” . Em 16 de fevereiro, “as menções a ele [coronavírus] aumentaram 157% por semana [em relação à semana anterior]”, diz Roots. “Na última semana de fevereiro, elas aumentaram 509%. E na semana de 9 de março, as menções aumentaram 605% em relação à semana anterior”.

Enquanto isso, Amy Cirbus, uma terapeuta de Nova York que oferece serviços por meio do Talkspace, diz que seus atendimentos aumentaram 65% desde o último mês, o que ela atribui aos temores do coronavírus. “As pessoas estão preocupadas com a forma como isso afetará a elas e suas famílias, bem como a lidar com as novas regras e isolamento social”, diz ela.

Mudanças nas regulamentações também estão facilitando o acesso online das pessoas a serviços de saúde mental. No fim de março, o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA abrandou as restrições que anteriormente tornavam quase impossível encontrar-se virtualmente com um médico devido a preocupações com a privacidade sob a Lei de Portabilidade e Responsabilidade de Seguro de Saúde (em inglês, Health Insurance Portability and Accountability Act – HIPAA). Isso pode ser um divisor de águas, mesmo depois que a pandemia atual diminuir.

“Acho que isso vai mudar fundamentalmente a maneira como as pessoas veem a telessaúde em geral”, diz Reena Pande, diretora médica da AbleTo, uma plataforma de terapia online com mais de 700 médicos em todo os EUA. Ela conta que na última semana de março, os pedidos para consulta com profissionais aumentaram 25%.

Mas enquanto os aplicativos de saúde mental facilitam o acesso a consultas e cuidados, são eles tão bons quanto os atendimentos presenciais tradicionais? “Esses aplicativos ajudam a aumentar e ampliar o atendimento”, diz John Torous, diretor de psiquiatria digital do Centro Médico Beth Israel Deaconess, afiliado a Harvard. “Quando eles são usados ​​como ferramentas independentes ou como intervenções únicas, há muitas provas de meta-análises de que elas podem não ser tão eficazes ou insuficientes como tratamento sozinhas”.

Um estudo de 2012 no Journal of the American Medical Association (JAMA) descobriu que ambos os grupos de pacientes que receberam terapia comportamental cognitiva por telefone e aqueles que se encontraram com um terapeuta frente a frente viram melhorias na depressão, mas com algumas diferenças. Embora a maioria do grupo de terapia por telefone tenha continuado com o tratamento, uma proporção maior deles voltou a apresentar sinais de depressão seis meses depois. O grupo presencial teve uma taxa ligeiramente menor na continuidade da terapia, mas foram mais resilientes.

Outra questão é a dificuldade dos usuários de confiarem na eficácia dos aplicativos. Muitos aplicativos de saúde mental vendem-se citando artigos científicos. “Mas estes estudos normalmente são de baixa qualidade, como se compararmos maçãs com laranjas,” Torous diz. Isto não quer dizer que estes aplicativos sejam prejudiciais, mas o marketing pode dar promessas falsas. Um estudo de 2019 no Journal of Medical Internet Research (JMIR) descobriu que menos de 2% das declarações dos fabricantes de aplicativos eram baseadas em evidências e que mais de 50% das alegações sobre o alívio da ansiedade ou depressão não tinham fundamentos. “Muitos deles dizem que são baseados em terapia cognitivo-comportamental”, diz ele. “Mas não sabemos como eles estão interpretando isso. É como dizer: “Se você ama os livros, o filme vai ser ótimo!”

No entanto, o afrouxamento das regras da HIPAA em relação à privacidade significa que os aplicativos estão preparados para causar um impacto nos cuidados de saúde mental. Isto deve tornar a terapia online mais atraente, não apenas para os clientes, mas também para os provedores, potencialmente ampliando o acesso.

E há evidências de que aplicativos com uma pessoa real do outro lado podem ser bastante eficazes. O estudo de 2019 descobriu que, quando um aplicativo envolvia terapia ou outra interação com outra pessoa, as taxas de engajamento aumentavam e as pessoas encontravam mais benefícios do que se simplesmente ouvissem uma gravação ou monitorassem seu humor, diz Torous.

Angela se sentiu constrangida em sua consulta. Seus vizinhos estavam por perto e o marido trabalha em casa com ela, o que dificulta a abertura e a conexão. “Eu não senti a segurança que eu normalmente sentiria em um consultório,” ela diz. “Não era uma conexão ruim [Wi-Fi], era apenas difícil obter a conexão que você tem pessoalmente”.

Ainda não está claro qual será o futuro dos cuidados de saúde mental em um mundo em que o autoisolamento possa durar um longo período e a única maneira de nos conectarmos com os outros é por meio de um dispositivo digital. Os smartphones não são apenas uma porta de entrada em potencial para os cuidados de saúde mental; eles também poderiam transformar radicalmente o que significa ir ao consultório médico.

O que está claro é que o afrouxamento das restrições do HIPAA poderia levar alguém que, de outra forma, não se sentiria à vontade em procurar assistência psicológica para fazê-lo por meio de um dispositivo digital pela primeira vez. Em um momento tão estressante, isso pode ser suficiente.

“Acho que esse pode ser o momento da história da psiquiatria em que veremos as pessoas aumentarem seu acesso aos cuidados de saúde mental”, diz Torous.

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