A necessidade de uma cultura digital para o Estado brasileiro
Governança

A necessidade de uma cultura digital para o Estado brasileiro

Não é possível criar um governo digital eficiente, com políticas públicas alinhadas aos anseios da sociedade, sem que seus servidores tenham uma destreza digital.

Sessenta milhões de visualizações. Essa é a marca do famoso TED que descreve o Golden Circle, criação de Simon Sinek e que tem sido utilizado desde então para reposicionar a importância do propósito nas organizações. No centro da estratégia, o “porquê”, a razão da existência, que deve ser compartilhado clara e ostensivamente. E dessa estratégia surge uma questão: por que precisamos digitalizar o Estado? As respostas para tal indagação estão cada vez mais óbvias e convergem para um raro consenso: é preciso buscar o digital pois não há melhores alternativas para se atingir a eficiência e a efetividade senão por meio da Transformação Digital dos serviços e das políticas públicas.

Contudo, os debates sobre esse tema não atingem com a mesma intensidade a alta administração das instituições. Como fazer, então? Certo é que essa tão falada “Transformação Digital” reflete uma tarefa muito complexa no mundo privado, que acaba se revelando ainda mais difícil para o setor público. Entre as muitas variáveis, a reflexão sobre o ‘como’ fazer deve se fundamentar em dois pilares: respeito à legislação – legalidade – e uso intensivo de tecnologia.

Quanto ao primeiro pilar, importante ter em mente que, dada a sua complexidade intratável, necessário se faz a formação contínua dos profissionais envolvidos. Isso porque entender a legislação acaba por ser tarefa instrumental e cotidiana para os agentes públicos.

Já em relação ao uso intensivo da tecnologia para a resolução de problemas, ainda que também carregue dificuldades importantes, são frequentemente tratadas como responsabilidade dos técnicos da área de TI. No mercado de trabalho do futuro, onde a tecnologia e a IA terão cada vez mais impactos, a participação das empresas no processo de requalificação dos trabalhadores é de vital importância. Um artigo da MIT Technology Review Brasil1 apresentou 4 estratégias que as organizações podem adotar para se prepararem para essa nova realidade:

  1. não fazer nada, alegando, além de outras prioridades, que a velocidade das mudanças é mais lenta do que a previsão e que há muita incerteza sobre o prognóstico, o que aumenta a chance de tais prognósticos estarem errados;
  2. desenvolver habilidades digitais em seus colaboradores, especialmente aqueles mais vulneráveis à substituição;
  3. prever tendências para o futuro do trabalho, analisando a estrutura da própria empresa para identificar os cargos que poderiam ser afetados pela IA considerando também as estratégias e produtos de cada organização;
  4. ajudar os colaboradores a assumirem a responsabilidade por seus próprios futuros, dando alternativas e indicando o caminho — treinamentos, habilidades e conhecimentos necessários — visando à capacitação para o novo mercado.

Diante desse cenário, cabe ao setor público atuar em duas frentes. Primeiramente, como um catalisador e incentivador para que o mercado e a academia consigam trabalhar na preparação e requalificação da força de trabalho do futuro, que exigirá habilidades e competências digitais, ainda ausentes em grande parte do mercado. Em uma segunda frente, cabe ao setor público incentivar e até mesmo “evangelizar” os seus servidores e colaboradores na busca dessas habilidades digitais, para que possa implantar, de fato, tecnologias para o bem da sociedade.

A cultura legisladora do Estado brasileiro

No Brasil há um claro desequilíbrio entre as nossas capacidades de entender regras normativas e a nossa habilidade de compreender tecnologias.

Produzimos leis e normativos — fazendo a regulamentação das próprias tecnologias — muito mais rapidamente do que nossa capacidade de as utilizar plenamente. As leis e normativos reagem e regulam novas situações oriundas das mudanças que surgem no mundo, usualmente em virtude do uso da própria tecnologia e sem, muitas vezes, entender sua melhor aplicação.

Essa situação exige das organizações (públicas, inclusive) flexibilidade e adaptação crescentes, principalmente pela rapidez com que tem ocorrido a mudança dos anseios humanos na Era Digital, estimulados pela utilização da tecnologia no seu cotidiano. Isso é particularmente verdade com as novas gerações, que já nascem digitais, fazendo naturalmente o famoso movimento de pinça, símbolo da revolução digital trazida pelos iPhones.

A busca pela destreza digital dos profissionais das organizações deveria, portanto, ser tão prioritária nas instituições governamentais quanto o conhecimento sobre as atualizações e o arcabouço jurídico normativo. A ignorância tecnológica tem o poder de gerar a inércia responsável por uma atuação lenta e descompassada com a realidade, ainda que aderente às leis. Ineficiente e muitas vezes inútil, portanto.

A regulamentação da Inteligência Artificial no Brasil está em discussão no Congresso Nacional e deverá gerar novo regramento nacional. Com um processo liderado por uma comissão de juristas e diversas audiências públicas, configura iniciativa fundamental que busca incluir instrumentos para aumento da confiança e da auditabilidade dos algoritmos, além de incentivos para o desenvolvimento dessa indústria. No mesmo sentido, o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) publicou em abril de 2021 a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA), por meio da Portaria nº 4.617, que tenta estabelecer uma estratégia nacional para tratar do tema, embora ainda falte um plano de ação mais detalhado para fazer a estratégia sair do papel e se transformar em resultados em benefício da sociedade2.

Mas, após as discussões, debates e definição do melhor texto, qual será a capacidade das organizações do Estado em compreender e utilizar a tecnologia regulada para o bem da eficiência e do bem-estar social? Com que maturidade será possível utilizá-la pelo próprio Estado, para o bem da sociedade?

A (dura) realidade da IA no setor público

Na administração pública, a IA ainda demanda compreensão e possui muito espaço para aplicações. É o que concluiu recente trabalho do TCU, que avaliou o estágio atual e perspectivas de utilização de Inteligência Artificial (IA) na administração pública federal (APF), identificando os riscos associados, de modo a prever os impactos para o controle e avaliar a proposta da Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA).

Segundo o relatório, mais de um terço (38%) das organizações federais estão no nível zero de maturidade em IA. Ou seja, são órgãos e entidades que não utilizam e sequer planejam utilizar a Inteligência Artificial nas suas atividades. Um outro terço da APF (33,5%) se encontra no nível 1, o que significa que já há diálogos internos sobre a viabilidade do uso da tecnologia.

O relatório informa ainda que três em cada dez instituições da APF (28,5%) se localizam nos níveis 2, 3 ou 4 de maturidade em IA. A “maior parte delas (17,1% do total) na fase de experimentação, com provas de conceito elaboradas ou já em fase piloto.  Apenas 3,4% do total já está no nível 4, expandindo para novos projetos de IA. E, finalmente, o levantamento atual do Tribunal revelou “lacunas que podem comprometer o alcance dos objetivos das organizações federais. Foi verificado o problema da ausência de objetivos específicos, realistas e mensuráveis de IA na APF”3.

Ainda este ano, o próprio TCU lançou um edital inédito para contratação de solução de IA para apoiar a instrução de denúncias e representações recebidas pela Corte. Por tratar-se de uma contratação inovadora e disruptiva, que exige uma parceria entre contratante e contratado, com riscos que devem ser assumidos por ambas as partes, optou-se pela contratação por meio do instrumento da encomenda tecnológica. Com o resultado recém-publicado, espera-se uma economia inicial de R$ 2,5 milhões/ano, e que poderá gerar um benefício na sua atuação estimado em R$ 112,5 milhões/ano.

Com base no problema concreto e utilizando instrumentos jurídicos conhecidos, a tentativa é de avançar na resolução de problemas que exigem pesquisa e desenvolvimento de tecnologias baseadas em IA, considerando os riscos inerentes de projetos dessa natureza, ao mesmo tempo em que se desenvolve o mercado local4. É uma parceria onde todos acabam ganhando: o TCU, a contratada, o mercado tecnológico e a sociedade.

Caminho similar seguiu o Banco do Brasil, que recentemente assinou acordo de cooperação com o laboratório Mila5. O objetivo do acordo é possibilitar o aumento da qualidade das soluções para acelerar a Transformação Digital por meio da pesquisa e desenvolvimento de soluções em IA. O primeiro projeto de pesquisa aplicada desta parceria será focado em segurança e prevenção de fraudes.

O Mila6 está situado em Montreal e é o maior representante do crescente ecossistema de Inteligência Artificial do Canadá, desde a sua fundação por Yoshua Benjo, vencedor do prêmio Turing em 2018 e considerado o pai do Deep Learning. É considerado um dos principais atores no desenvolvimento de aplicações de IA para corporações de todo o mundo, ao combinar estrategicamente investimentos do governo, a presença de pesquisadores de alto nível e incentivos do mercado.

Em consonância com a busca realizada pelo TCU e BB, o aumento da eficiência e a consequente diminuição de riscos, fraudes e corrupção nas atividades públicas estão diretamente relacionados à capacidade de utilização das melhores tecnologias disponíveis. Por mais que surjam as regulações necessárias, a sua própria aplicabilidade requer que a tecnologia seja utilizada, sob pena de se tornar somente mais um grave empecilho para a pesquisa e desenvolvimento, ainda que corporativos. E, cada vez mais, essa discussão também deve ser feita pela sociedade civil. Pensar o futuro das instituições com o uso intensivo de tecnologia deve estar na agenda de todos.

Governo Digital requer cultura digital institucional

Sábias são as primeiras palavras Lei 14.129/2021 – Lei do Governo Digital — que vinculam explicitamente a eficiência nas políticas públicas à Transformação Digital e à inovação das organizações estatais. A partir disso, todo o incentivo para desenvolver nos profissionais públicos as competências digitais necessárias para fazer o trabalho são, também, mandamentos legais. E diante da nossa histórica cultura, pode residir aí uma boa chance para a construção da imprescindível destreza digital dos agentes públicos. Não é possível criar um governo digital eficiente, com políticas públicas alinhadas aos anseios da sociedade, sem que seus servidores (executores) tenham uma destreza digital.

Que a capacidade do Estado brasileiro para aplicar soluções tecnológicas efetivamente úteis aos seus fins e transparentes para a sociedade possa ao menos acompanhar a produção das normas que, se desenhadas desconsiderando a realidade nacional, pouco servirão para além dos controles e dos porquês, ainda que bem-intencionados.

*As opiniões contidas no texto são pessoais e não expressam o posicionamento institucional do Tribunal de Contas da União ou do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.


Este artigo foi produzido por Fabio Correa Xavier, Diretor do Departamento de Tecnologia da Informação do TCESP, Mestre em Ciência da Computação, Professor e colunista da MIT Technology Review, em parceria com Wesley Vaz, Secretário de Fiscalização de Integridade de Atos e Pagamentos de Pessoal e de Benefícios Sociais do TCU.

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