O senso comum nos diz que o maior nem sempre é o melhor, mas durante muito tempo a lógica econômica sugeria exatamente o contrário. Na Velha Economia, as estrelas eram as grandes corporações, endeusadas tanto mais assíduas em aquisições – muitas vezes, de modelos de negócios que nem continham complementaridade com as vantagens competitivas da empresa. No Brasil, a não muito distante política de “campeões nacionais” traduziu um frenesi pelo gigantismo, esvaziado depois por uma série de fatores políticos. Mas as novas tecnologias, que abriram portas para modelos e processos inovadores, barateando custos com a aposta na eficiência, mudaram esse prisma.
A Nova Economia é também uma era de desagregação – em particular, a desses monstros frankensteins. Os negócios que estão escalando a economia mundial operam em uma lógica que, por essência, demanda agilidade, no mesmo passo em que as novas tecnologias sinalizam um cenário de oportunidades tão vasto quanto as mudanças de comportamento que ele promove. Não há modelo estático, inflexível e burocrático que possa realizar essa antiga pretensão totalizante.
Por aqui, vemos muito claramente como a desagregação começou um processo que atinge em cheio os grandes grupos de comunicação. Sim, a informação em tempo real foi uma pedra e tanto no caminho para emissoras de TV, jornais e revistas, por exemplo. Mas, teoricamente, nada impedia que essas empresas embarcassem nos novos tempos, mudando. O ponto é outro: para promover uma adaptação verdadeira, precisariam fazer coisas mais difíceis do que comprar um grande servidor e contratar uma equipe de tecnologia. Seria necessário se especializar, o que significava, entre outras coisas, desapegar de estruturas megalômanas, ultrapassadas, ou atuais, mas sem qualquer conexão com suas vantagens competitivas centrais.
Considerada a maior editora da América Latina em seu auge, a Editora Abril, por exemplo, era um conglomerado familiar que reunia não só as redações de dezenas de revistas, mas também outras estruturas pesadas: negócio publicitário, parque gráfico, logística, canal de TV, educação, ativos imobiliários, entre outros. Com o tempo, ficou claro que não havia lógica e vantagens competitivas suficientes para enfrentar a nova cultura da informação se a empresa não mudasse seu modelo de organização e sua própria cultura empresarial. Quebrou antes disso.
Entre os “campeões nacionais”, o Grupo Odebrecht foi um daquelas que receberam empréstimos estatais estratosféricos para suas novas divisões de negócio. Com atuação em setores como construção civil, mineração e petroquímica, operava nas áreas de energia, transporte, arenas de futebol, saneamento, imobiliário, óleo e gás, entre outros. Com a derrocada do modelo, e atualmente em recuperação judicial com dívidas de mais de 65 bilhões de reais, a empreiteira teve de abrir mão de seu gigantismo de forma compulsória. O conglomerado, rebatizado de Novonor, reestruturou-se e vendeu ativos, com o quadro de funcionários encolhendo 80%.
Um conglomerado muitas vezes pode ser um negócio ineficiente e confuso. Por melhor que seja a equipe de gestão, sua energia e seus recursos serão divididos em vários negócios, que podem ou não ser sinérgicos. Peter Lynch, lendário investidor, cunhou a expressão diworsification para descrever empresas que se diversificam em áreas além de suas competências essenciais – a expressão é uma brincadeira com as palavras diversificação (diversification) e pior (worse). Investir em ativos tão diferentes e distantes de suas competências essenciais confunde, aumenta o custo de investimento e adiciona camadas de burocracia para controlar os negócios, o que tende a levar a retornos ajustados ao risco abaixo da média de empresas especializadas, que acabam sendo as melhores opções.
Na Nova Economia, a disponibilidade de tecnologia, somada ao software proprietário, impulsionou a criação de empresas especializadas, que acabam desagregando os grandes conglomerados que faziam de tudo, mas malfeito.
Linhas, listas e equívocos
Um caso curioso do fenômeno da desagregação é do Craigslist. Gigante por natureza, o site norte-americano de anúncios gratuitos devastou as receitas que os jornais impressos possuíam com classificados pagos. É uma espécie de páginas amarelas virtual, um sobrevivente jurássico da primeira onda da Internet, nos anos 90. Confuso, segue formado por listas estanques, divididas por assuntos, sem nenhuma preocupação adicional de navegação amigável ou de segurança. É aberta para todos, direta. De tudo se encontra por lá, de empregos a prestação de serviços, de itens de segunda mão a apartamentos para alugar. Mas também golpes, prostituição e pornografia. Ou seja, um sumo sem filtragem da sociedade americana.
A desagregação desse modelo é bastante ilustrativa. Faz anos circula na rede a imagem de uma página inicial do site, indicando com setas a miríade de startups que, ao longo do tempo, foram ocupando o lugar daquelas demandas indicadas no Craigslist. Suas ofertas estão sendo suplantadas por ecossistemas formados por negócios inovadores, cujo uso da tecnologia permitiu oferecer (quase) todos os serviços de forma dedicada, o que se traduz em mais agilidade no atendimento, ganho de confiança e melhor preço.
Procurando um curso? Considere plataformas certificadas como o Coursera. Um emprego? Aplique seu currículo e faça conexões no Linkedin. Uma casa de temporada? Airbnb tem variedade de estilos e preço para incontáveis perfis. Um produto novo ou usado? Existem muitos marketplaces como a Amazon. Comprar roupas, material de construção, artigos de jardinagem e livros: cada vez mais, a tendência é que exista pelo menos uma empresa para cada serviço ou produto relevante economicamente, tornando tudo acessível na palma das nossas mãos. Não surpreende, portanto, a perda de interesse pelo Craigslist, como mostra o gráfico abaixo.
*gráfico criado pelo autor
O declínio do site norte-americano acompanha a ascensão das empresas de tecnologia. Potência anacrônica, é possível que o Craigslist seja o último remanescente de uma Internet tida como mais comunitária – o que a empresa, de fato, expressou como diretriz desde seu início, com espaços para as listas de discussão que proliferaram na pré-história das redes sociais.
Esse aspecto, de certo modo mais romântico, otimista, de pessoas se ajudando da maneira mais direta possível, pode ter contribuído para estender a sedução. Mesmo capitalistas de risco, como Fred Wilson, se equivocaram, embora por razões mais objetivas. “Sonhamos em financiar uma empresa que pode valer um bilhão de dólares com apenas 30 funcionários”, escreveu em seu blog em 2009. Falava do Craigslist. Segundo ele, “mais icônico que o Google”. O tempo mostrou o tamanho do erro.
Um gigante que percebeu o movimento de desagregação de fora para dentro é o Grupo Globo – sofre, por exemplo, com o êxodo de estrelas para as plataformas de streaming e da publicidade para as redes sociais. Para não ficar para trás, a empresa vem fazendo o dever de casa e tenta reconfigurar seu modelo, sem perder as competências essenciais do negócio, voltado para a produção de conteúdo, onde estão suas vantagens competitivas. No passado recente, vendeu a gravadora Som Livre para a Sony, passou adiante 17 torres de transmissão e se desfez de seu data center, uma vez que migrou suas produções para os servidores do Google. No fim do ano, optou por trocar a propriedade de sua sede em São Paulo pelo aluguel. A Globo faz sua desagregação e, portanto, está se especializando mais onde detém vantagens competitivas.
Na rota da Nova Economia, a Globo Ventures, gestora de Venture Capital dos acionistas do grupo, vem construindo um portfólio de investimentos em startups de tecnologia, sem participação direta na gestão. Os setores incluem delivery, e-commerce, adquirência, games, transporte e crédito. Em parte dos investimentos, a Globo Ventures usa uma estratégia conhecida como media for equity, investindo recursos na startup que se compromete a usar o dinheiro em publicidade nas mídias do grupo, que incluem jornais, revistas, canais de tevê por assinatura, sites de internet e, principalmente, a TV Globo.
Ao mesmo tempo, e em grande parte fruto dessa visão desagregadora, a Globoplay cresceu aproximadamente 70% no ano passado, aumentando sua base de assinantes e estreitando parcerias com outras plataformas de streaming. O Grupo Globo fechou com aumento de receita e planos para investir mais neste ano no que é fundamental – a produção de conteúdo – e no que é mandatório – em tecnologia. Por ora, os sinais são promissores para a ex-vênus platinada se tornar uma mediatech.
Saúde e dinheiro no bolso
A desagregação não traz vantagens cristalinas apenas no varejo da economia: pode não só atender a uma demanda de mercado mais específica, como também contribuir com soluções para a sociedade. No setor do seguro saúde, por exemplo, empresas inovadoras estão transformando o sistema como um todo. Em breve começam a sair de cena as grandes seguradoras, que dominam a cadeia de valor do setor de uma ponta a outra, operando na lógica inflexível da remuneração por pacote de serviços, não por valor – em inglês, Value-based Healthcare (VBHC).
A healthtech brasileira Alice, por exemplo, já acumula investimentos na casa do bilhão, justamente porque acompanha esse movimento que vem substituir a rigidez do fee-for-service por um modelo capaz de prestar atendimento mais pontual e personalizado. Nesse processo de desagregação em específico, as iniciativas disruptivas trazem para a equação da remuneração os desfechos clínicos, isto é, o impacto da doença na vida do paciente. Com o uso da tecnologia, da coleta de dados inteligente, são capazes de direcionar melhor os tratamentos em uma estrutura enxuta, evitando desperdícios e aumentando a eficiência. O acompanhamento sistemático dos desfechos clínicos muda o paradigma do negócio. Cada vez mais, essas iniciativas fortalecem a atenção primária à saúde, em que o foco é cuidar das pessoas, não apenas tratar uma doença.
Startups como a americana Firefly, por exemplo, apostam na telemedicina direcionada a prevenir e detectar doenças em estágio inicial e monitorá-las. Além do ganho óbvio na saúde pública, a atenção primária que emerge com a desagregação desafoga o sistema como um todo, afundado em pilhas de exames clínicos inúteis e procedimentos caros, quase tardios, que poderiam ter sido evitados. O aspecto econômico não passou despercebido pelas próprias grandes seguradoras corporativas de saúde dos Estados Unidos: em 2020, 89% delas já possuíam cobertura de telemedicina de baixa acuidade em suas apólices.
Os pagamentos, o processamento de sinistros, a montagem da rede, a corretagem e o atendimento ao cliente são alguns dos muitos serviços que oneram as seguradoras de saúde tradicionais, sem que isso signifique melhora no atendimento. Cada um desses serviços tem potencial de ser articulado em um ecossistema que facilitará o acesso, com mais qualidade e preço justo.
Exemplos não faltam. Uma desagregação pode, ironicamente, colaborar para uma integração mais inteligente da sociedade, incluindo suas reais demandas e necessidades, em que o menor se traduz no que há de melhor.
Este artigo foi produzido por Diego Barreto, VP de Finanças e Estratégia do iFood e colunista da MIT Technology Review Brasil.