Em janeiro, uma multidão violenta montou a maior invasão ao Capitólio dos Estados Unidos, a sede da democracia americana em mais de 200 anos, movida pela falsa crença de que a eleição presidencial havia sido fraudada. O principal autor dessa afirmação foi o agora ex-presidente Donald Trump, mas a prontidão do grupo em acreditar nisso foi em grande parte produto da economia da atenção que a tecnologia moderna criou.
Os feeds de notícias no Facebook ou Twitter operam em um modelo de negócios de mercantilizar a atenção de bilhões de pessoas por dia, classificando tweets, postagens e grupos para determinar quais obtêm mais engajamento (cliques, visualizações e compartilhamentos) — o que atiça ainda mais o emocional e causa forte reações. Essas plataformas de mercantilização da atenção distorceram a psique coletiva. Elas deram espaço a visões mais limitadas e loucas sobre o mundo.
Nota: Este artigo é um excerto adaptado de The New Possible: Visions of Our World beyond Crisis publicado pela Cascade Books.
Os algoritmos de recomendação do YouTube, que determinam 70% do tempo de exibição diário para bilhões de pessoas, “sugerem” o que se supõe serem vídeos semelhantes ao que o usuário está vendo, mas na verdade levam os espectadores a um conteúdo mais extremo, mais negativo ou conspiratório porque é isso que os mantém em suas telas mais tempo. Durante anos, o YouTube recomendou “thinspiration” — vídeos que promovem a anorexia — para meninas adolescentes que assistiam a vídeos sobre “dieta”. E quando as pessoas assistiam a vídeos científicos do pouso da NASA na Lua, o YouTube recomendava vídeos sobre a teoria da conspiração da Terra plana. Isso aconteceu centenas de milhões de vezes. Feeds de notícias e sistemas de recomendação como esse criaram uma espiral descendente de negatividade e paranoia, desacoplando lentamente a percepção de bilhões de pessoas do que é realmente real.
Ver a realidade de forma clara e verdadeira é fundamental para nossa capacidade de fazer qualquer coisa. Ao monetizar e mercantilizar a atenção, vendemos nossa capacidade de ver os problemas e implementar soluções coletivas. Isso não é novidade. Quase sempre que permitimos que os sistemas de suporte vitais de nosso planeta ou sociedade sejam transformados em mercadoria, isso leva a outros colapsos. Quando você mercantiliza a política com anúncios micro segmentados otimizados para Inteligência Artificial, você remove a integridade da política. Quando você mercantiliza os alimentos, perde contato com o ciclo de vida que torna a agricultura sustentável. Quando você mercantiliza a educação em produtos digitais de conteúdo, perde a interrelação de desenvolvimento humano, confiança, cuidado e autoridade docente. Quando você mercantiliza o amor transformando as pessoas em cartas de baralho descartáveis no Tinder, você rompe a complexa dança envolvida em forjar novos relacionamentos. E quando você mercantiliza a comunicação em blocos de postagens e fios de comentários no Facebook, remove o contexto, as nuances e o respeito. Em todos esses casos, os sistemas extrativos lentamente erodem as bases de uma sociedade e de um planeta saudáveis.
Mudança de sistemas para proteger a atenção
O famoso biólogo, E.O. Wilson, propôs que os humanos deveriam governar apenas metade da Terra e que o resto deveria ser deixado sozinho. Imagine algo semelhante para a economia da atenção. Podemos e devemos dizer que queremos proteger a atenção humana, mesmo que isso sacrifique uma parte dos lucros da Apple, Google, Facebook e outras grandes corporações de tecnologia.
Os bloqueadores de anúncios em dispositivos digitais são um exemplo interessante do que pode se tornar uma mudança estrutural no mundo digital. Seriam eles um direito humano? Se todos pudessem bloquear anúncios no Facebook, Google e sites, a internet não seria capaz de se autofinanciar e a economia da publicidade perderia enormes quantidades de receita. Esse resultado nega o direito? Sua atenção é um direito? Ela é nossa? Deveríamos colocar um preço nela? Vender órgãos humanos ou escravos pode atender a uma demanda e gerar lucro, mas dizemos que esses itens não pertencem ao mercado. Como os seres humanos e seus órgãos, a atenção humana deveria ser algo que o dinheiro não pode comprar?
Sua atenção é um direito? Ela é nossa? Deveríamos colocar um preço nela? Como os seres humanos e seus órgãos, a atenção humana deveria ser algo que o dinheiro não pode comprar?
A pandemia da Covid-19, o movimento Black Lives Matter e as mudanças climáticas e outras crises ecológicas tornaram mais e mais pessoas conscientes de como nossos sistemas econômicos e sociais estão falidos. Mas não estamos chegando às raízes dessas crises interconectadas. Estamos caindo em intervenções que parecem ser a resposta certa, mas, em vez disso, são armadilhas que mantêm o status quo disfarçadamente. Práticas policiais ligeiramente melhores e câmeras corporais não evitam a má conduta policial. Comprar um Prius ou Tesla não é suficiente para realmente reduzir os níveis de carbono na atmosfera. Substituir canudos de plástico por canudos biodegradáveis não vai salvar os oceanos. A manobra do Instagram para esconder o número de “curtidas” não resolve os problemas de saúde mental dos adolescentes, quando o serviço se baseia na comparação social constante e no ataque sistêmico ao impulso humano de se conectar. Precisamos de uma reforma sistêmica muito mais profunda. Precisamos mudar as instituições para servir ao interesse público de maneiras que sejam proporcionais à natureza e escala dos desafios que enfrentamos.
No Center for Humane Technology, uma coisa que fizemos foi convencer a Apple, o Google e o Facebook a adotar — pelo menos em parte — a missão de “Tempo bem gasto”, mesmo que fosse contra seus interesses econômicos. Este foi um movimento que lançamos por meio de amplas campanhas de conscientização e defesa em meios de comunicação públicos, e ganhou credibilidade junto a designers de tecnologia, pais preocupados e alunos. O objetivo era mudar os incentivos do mundo digital baseados em uma corrida pelo “tempo gasto” em telas e aplicativos para uma “corrida ao topo” para ajudar as pessoas a investirem bem o tempo. Essa filosofia trouxe uma mudança real para bilhões de pessoas. A Apple, por exemplo, introduziu os recursos “Screen Time” em maio de 2018 que agora vêm em todos os iPhones, iPads e outros dispositivos. Além de mostrar a todos os usuários quanto tempo eles passam em seus telefones, o Screen Time oferece um painel de controles parental e limites de tempo de aplicativos que mostram aos pais quanto tempo seus filhos passam online (e o que estão fazendo). O Google lançou sua iniciativa de Digital Wellbeing semelhante na mesma época. Inclui outros recursos que sugerimos, como facilitar o desligamento antes de dormir e limitar as notificações. Na mesma linha, o YouTube introduziu notificações do tipo “Faça uma pausa”.
Essas mudanças mostram que as empresas estão dispostas a fazer sacrifícios, mesmo na ordem de bilhões de dólares. No entanto, ainda não mudamos a lógica central delas. Que uma empresa faça algo contra seus interesses econômicos é uma coisa; fazer algo contra o DNA de seu propósito e objetivos é algo completamente diferente.
Trabalhando para a ação coletiva
Precisamos de uma reforma profunda e sistêmica que provoque uma mudança nas corporações de tecnologia para servir ao interesse público em primeiro lugar. Precisamos pensar mais sobre quantas mudanças sistêmicas podem ser possíveis e como controlar a vontade coletiva das pessoas.
Recentemente, no Center for Humane Technology, entrevistamos Christiana Figueres, a ex-secretária executiva da Convenção das Nações Unidas sobre Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (2010-2016), para nosso podcast Your Undivided Attention. Ela foi responsável pela “diplomacia colaborativa” que levou ao Acordo de Paris, e aprendemos como ela foi capaz de fazer com que 195 países diferentes, contra todas as probabilidades, tomassem resoluções compartilhadas e de boa fé para lidar com a mudança climática. Figueres inicialmente não acreditava que fosse possível fazer com que muitos países concordassem, mas percebeu que o sucesso da Convenção de Paris significava que ela mesma teria que mudar sua postura. Ela tinha que acreditar genuinamente que era possível fazer os países se comprometerem com a ação climática. Foi assim que ela conseguiu focar em fazer com que os países participantes também acreditassem na possibilidade de abordar a mudança climática em seus territórios. Onde as negociações internacionais anteriores sobre o clima fracassaram, os esforços de Figueres uniram as nações para chegar a um acordo sobre financiamento, novas tecnologias e outras ferramentas para manter o aumento da temperatura global abaixo de 2 ou, melhor ainda, de 1,5°C.
No caso da indústria de tecnologia, temos uma vantagem, pois não precisamos convencer centenas de países ou milhões de pessoas. Menos de 10 pessoas administram a infraestrutura digital mais poderosa do século 21 — as chamadas empresas FAANG, que incluem Facebook, Amazon, Apple, Netflix e Alphabet (antigo Google). Se esses indivíduos se reunissem e concordassem que maximizar o lucro dos acionistas não era mais o objetivo comum, a infraestrutura digital poderia ser diferente. Se Christiana Figueres pôde trazer um consenso entre 195 nações, poderíamos considerar a possibilidade de conseguir o mesmo com 10 CEOs de Big Techs.
Uma nova economia da tecnologia humana
Vários princípios econômicos precisam mudar para que a tecnologia se alinhe à humanidade e ao planeta. Um deles é o paradigma de crescimento. Você simplesmente não pode realizar uma lógica de crescimento infinito em um substrato finito. O impulso para o crescimento econômico infinito está levando a uma crise ecológica planetária. Para as empresas de tecnologia, a busca do crescimento infinito da atenção humana extraída leva a uma crise semelhante de consciência global e bem-estar social. Precisamos mudar para uma economia de atenção pós-crescimento que coloque a saúde mental e o bem-estar no centro de nossos resultados desejados.
Vários princípios econômicos precisam mudar para que a tecnologia se alinhe à humanidade e ao planeta.
Um pequeno indício dessa mudança está ocorrendo em países como a Nova Zelândia e a Escócia, onde organizações como a Wellbeing Economy Alliance estão trabalhando para mudar de uma economia que promove o Produto Interno Bruto (PIB) para uma com essas prioridades alternativas. Os líderes estão perguntando como o bem-estar pode ajudar o entendimento público de diretrizes e escolhas políticas, orientar decisões e se tornar uma nova base para o pensamento e a prática econômica.
Outra mudança em direção a uma tecnologia mais humana requer uma gama mais ampla de partes interessadas que possam criar responsabilidade pelo impacto social de longo prazo de nossas ações. No momento, é possível para grandes empresas de tecnologia ganhar dinheiro vendendo porções de atenção “falsas” cada vez mais delicadas — vendendo cliques falsos de fontes de notícias falsas para anunciantes falsos. Essas empresas ganham dinheiro mesmo que o conteúdo do link ou do artigo direcionado seja tremendamente equivocado e propague informações incorretas. Esse oportunismo degrada a ecologia da informação ao destruir nossa capacidade de confiar em fontes de conhecimento ou compartilhar crenças sobre o que é verdade, o que por sua vez destrói nossa capacidade de tomar boas decisões. O resultado é polarização, desinformação e o colapso da cidadania democrática. Precisamos criar mecanismos que incentivem os participantes do mundo digital a considerar prazos mais longos e o impacto mais amplo de suas ações na sociedade.
A vontade humana desempenha um papel importante aqui. E se os líderes por trás do modelo de distribuição de receita da App Store da Apple — que atua como o banco central ou Reserva Federal da economia da atenção — simplesmente optassem por distribuir a receita para os fabricantes de aplicativos com base não em quantos usuários compraram mais bens virtuais ou gastaram mais tempo usando-o, mas quem entre os fabricantes melhor cooperou com outros aplicativos no celular para ajudar todos os membros da sociedade a viver mais de acordo com seus valores?
Em última análise, tudo se resume a definir as regras adequadas. É difícil para qualquer ator otimizar o bem-estar e o alinhamento com os valores da sociedade quando outros ainda estão competindo por recursos e poder finitos. Sem regras, os atores mais implacáveis vencem. É por isso que a legislação e as políticas são necessárias, juntamente a vontade coletiva do povo de implementá-las. A maior meta-crise é que os processos democráticos de criação de proteções operam em um ritmo muito mais lento do que a taxa de desenvolvimento tecnológico necessária para fazer a diferença. A tecnologia continuará a avançar mais rápido do que a compreensão quanto a seus danos pelas instituições democráticas do século XX. O próprio setor de tecnologia precisa se unir, de forma colaborativa, e encontrar maneiras de operar de modo que os objetivos sociais compartilhados sejam colocados acima da hipercompetição e da maximização dos lucros.
Finalmente, precisamos reconhecer o enorme poder assimétrico que as empresas de tecnologia têm sobre os indivíduos e a sociedade. Eles nos conhecem melhor do que nós mesmos. Qualquer estrutura de poder assimétrica deve seguir o modelo fiduciário ou “dever de cuidar” exemplificado por um bom professor, terapeuta, médico ou enfermeiro – ou seja, deve trabalhar a serviço daqueles com menos poder. Não deveria operar com um modelo de negócios baseado na extração. Os novos modelos de negócios para a tecnologia precisam ser generativos: eles precisam nos tratar como o cliente e não o produto, e se alinhar com nossos valores e humanidade mais profundamente arraigados.
Para ser humano
EO Wilson disse: “O problema com a humanidade é que temos emoções paleolíticas, instituições medievais e tecnologia divina”. Precisamos abraçar nossas emoções paleolíticas em todas as suas fraquezas e vulnerabilidades fixas. Precisamos atualizar nossas instituições para incorporar mais sabedoria, prudência e amor. E precisamos desacelerar o desenvolvimento de uma tecnologia divina cujos poderes vão além de nossa capacidade de guiar a direção do barco em que estamos todos.
O reino do que é possível continua a se expandir, mas está surgindo simultaneamente com questões globais exponencialmente desafiadoras que requerem melhores informações, liderança e ação. Em vez de aceitar uma corrida para o fundo que nos rebaixa e divide, podemos juntos criar um cenário de tecnologia que permite uma corrida para o topo — uma que apoia nossa interconexão, civilidade e brilho profundo. A mudança, acredito, é humanamente possível.
Tristan Harris é cofundador e presidente do Center for Humane Technology.