A cientista que cocriou o CRISPR não descarta termos bebês projetados no futuro
HealthHealth Innovation por Einstein

A cientista que cocriou o CRISPR não descarta termos bebês projetados no futuro

Jennifer Doudna responde às nossas perguntas.

O dia em que falei com Jennifer Doudna foi um dia difícil: o Escritório de Patentes dos EUA tinha acabado de decidir contra a universidade dela sobre os usos mais importantes do CRISPR, entregando os direitos comerciais aos seus rivais no Broad Institute do MIT e em Harvard, EUA. 

Doudna é a codescobridora do sistema CRISPR, o método revolucionário de engenharia de genes que, 10 anos após sua descoberta original, está começando a ser testado em humanos. Há uma lista cada vez maior de aplicações em diagnósticos e plantas modificadas; os pesquisadores já estão explorando potenciais tratamentos para curar anemia falciforme, cegueira e doenças hepáticas. Em 2020, ela dividiu um Prêmio Nobel com a também cientista Emmanuelle Charpentier. As duas se tornaram a sexta e sétima mulheres a ganhar o prêmio em Química.   

Doudna dirige o inovador Instituto de Genômica da Universidade da Califórnia, em Berkeley, Estados Unidos, e o trabalho do seu laboratório continua focando nos detalhes moleculares do funcionamento do sistema CRISPR. Talvez ela tenha conseguido transmitir ao público o formidável poder da edição versátil de genes, bem como as possíveis desvantagens da tecnologia, melhor do que ninguém. Falei com ela sobre esta e outras questões, incluindo a surpreendente realidade de um sistema legal onde a pessoa que recebeu um Nobel pela descoberta não é quem ganha a patente principal. 

AR: O escritório de patentes decidiu contra Berkeley em um longo caso sobre o CRISPR. Quais são suas reações quanto a isso?  

JD: Realmente, não faz sentido para mim, [mas] estou satisfeita por termos 45 patentes emitidas, 40 patentes pendentes, todas nos EUA. E nossas 30 patentes europeias não são afetadas pela decisão. E honestamente, olha, minha pesquisa continua.  

AR: Sempre pensei que o dinheiro não fosse o motivo por trás da luta pela patente. Acho que foi uma batalha tão difícil pois não se tratava de controle comercial, mas sim de crédito quem fez a ciência e da verdade.  

JD: Essa é a sua hipótese. É difícil dizer, não é? Não sei quais podem ter sido as motivações dos outros. Obviamente, não concordamos com a decisão e vamos recorrer. Se estamos falando sobre quem, a princípio, inventou o quê, então 30 países e o Comitê do Prêmio Nobel também não concordam. 

AR: O que isso lhe diz sobre o funcionamento do sistema de patentes, já que a pessoa que recebeu um Nobel pela descoberta pode não ser quem ganha a patente principal? Isso deveria fazer sentido para as pessoas?  

JD: Isso realmente não faz sentido para mim. Não sei se faz sentido para os outros. Não acho que haja muita dúvida na comunidade científica sobre o que aconteceu. 

AR: Walter Isaacson, que escreveu biografias de Steve Jobs e Leonardo Da Vinci, escreveu um livro sobre você. Como foi participar da sua biografia? 

Jd: Honestamente, foi um pouco apavorante e me deixou mais humilde. Mas preciso dizer que me senti feliz por alguém tão talentoso quanto Walter estar interessado na história, pois ele é um escritor maravilhoso. Ele fez um ótimo trabalho tentando capturar a sensação que todos nós tínhamos de fazer parte dessa incrível transformação que aconteceu com o CRISPR. 

AR: Recentemente, você se tornou a principal conselheira científica de uma empresa de Wall Street chamada Sixth Street. O que planeja fazer lá e por que você assumiu esse papel?  

JD: Estou animada pois na Sixth Street podemos identificar as equipes certas, as oportunidades certas, as aberturas certas onde o financiamento pode realmente acelerar a Ciência e as oportunidades de negócios. Uma área onde acho que há muito potencial é o uso do aprendizado de máquina para analisar dados que estão saindo do CRISPR. Sabemos que uma das oportunidades futuras mais importantes é entender a genômica, ou seja, a função dos genes, usando o CRISPR. Entender não só genes individuais, mas conjuntos inteiros de genes e vias e diferentes tipos de células com todos os seus detalhes. Os tipos de dados que vêm desses trabalhos obviamente contêm uma enorme quantidade de informações e muitas delas são sutis. Então, eu acho que será muito poderoso usar algoritmos de machine learning para extrair esses tipos de conjuntos de dados. Podemos imaginar usar estratégias dessa natureza para entender a genética das doenças — nossas suscetibilidades individuais — e identificar novos tratamentos. 

AR: Eu sempre penso em você como uma cientista exemplar. Uma vez vi uma foto sua olhando por cima do ombro de um aluno e é assim que você é na minha mente. Mas isso exige que você faça algo um pouco diferente. Por que você acha que seria boa em escolher tecnologias para investimento comercial, em vez de questões científicas mais intrigantes? 

JD: Eu amo a ciência e meus melhores dias são quando estou olhando por cima do ombro de um aluno analisando dados no laboratório. Porém, eu aprendi que para o CRISPR ter um impacto na próxima década precisaremos da capitalização efetiva das equipes certas.  

AR: Uma pesquisa na Harvard Business Review descobriu que apenas 2,3% do dinheiro de capital de risco ia para startups lideradas por mulheres. Você ficou chocada ao saber disso?  

Jd: Desapontada, talvez, mas não chocada. Eu estou nesse mundo há tempo suficiente para ver como ele de fato é.  

AR: Você tem algumas ex-alunas, Rachel Haurwitz, CEO da Caribou Biosciences, e Janice Chen, uma das cofundadoras da Mammoth Biosciences. Elas são exemplos proeminentes de mulheres que iniciaram empresas de CRISPR. Como você acha que são as diferenças entre os desafios e barreiras que as mulheres encontram na indústria e no meio acadêmico?  

JD: As mulheres não costumam estar tão conectadas com os mundos da biotecnologia e do empreendimento. É difícil explicar ou entender exatamente por que isso acontece, mas parece ser o caso. Então, uma das coisas que estamos procurando fazer aqui no Instituto é apoiar mulheres empreendedoras. Acabamos de anunciar o nosso programa Mulheres Empreendedoras na Ciência. É uma oportunidade de financiamento filantrópico, por meio da qual esperamos apoiar mais diversidade, especialmente em biotecnologia. É para dar às mulheres o tipo de conexões que elas precisarão — o tipo de treinamento que as ajudará a apresentar boas propostas para grupos de investimento, construir equipes, assumir papéis de liderança e se sentirem confiantes em suas habilidades para administrar equipes. Eu acho que podemos ajudar com todas essas coisas. 

AR: Qual é o estado de comercialização do CRISPR agora? Como tem sido?  

JD: Extraordinário. É um momento incrível. Várias empresas fundadas na última década já se tornaram públicas e muitas outras estão em diferentes estágios de construção de seus trabalhos. Temos visto divulgações muito interessantes de ensaios clínicos e de impactos sustentados e duradouros nos pacientes. Também veremos cada vez mais avanços empolgantes em outros setores. Um exemplo é na agricultura.  

O foco tem sido majoritariamente nos usos médicos e clínicos do CRISPR. No entanto, suspeito que na próxima década, quando pensarmos no impacto global e no impacto na vida diária, é aí que os usos na agricultura e até mesmo para lidar com as mudanças climáticas terão um impacto muito maior. Pam Ronald, que é professora na UC Davis (EUA) e uma de nossas professoras afiliadas no IGI (Innovative Genomics Institute, ou Instituto de Genômica Inovadora), foi capaz de usar o CRISPR para projetar arroz tolerante à seca, que está em processo de testes de campo aqui, localmente, na Califórnia. Algo que está mais longe, mas eu acho que também tem um impacto potencialmente muito alto, é usar o CRISPR em comunidades microbianas, no solo ou na água, o que nos permitirá melhorar suas capacidades de captura de carbono.  

AR: Gostaria de fazer duas perguntas sobre edição hereditária do genoma. Bebês CRISPR. Pelo que entendi, você nunca foi a favor disso. Mas você também não endossou tentativas de bani-los. Qual tem sido a evolução do seu pensamento? 

JD: Continuo acreditando que isso ainda não deve ser usado clinicamente. Acho que ainda estamos em um ponto em que não é apropriado usar o CRISPR em embriões humanos com o objetivo de gerar uma gravidez. E por que não? Bem, porque a tecnologia ainda não foi adequadamente avaliada para esse sistema. Não acho que já tivemos um argumento claro defendendo uma real necessidade médica dessa abordagem. Em terceiro lugar, não houve oportunidade para que a sociedade em geral considere as implicações desse tipo de uso para fazer mudanças hereditárias nos seres humanos.  

AR: É difícil identificar um uso médico necessário. Mas é bem mais fácil identificar um possível uso de aprimoramento. Por exemplo, provavelmente existem versões de genes que protegem as pessoas contra o Alzheimer. Se eu pudesse dar um desses para o meu filho, seria ótimo. O que você acha sobre o futuro uso do CRISPR para melhorar as pessoas, digamos, aumentando sua resistência a doenças?  

JD: Eu acho que é bem possível o CRISPR seguir nessa direção. Estou muito interessada nisso pelas razões que você acabou de listar. Não pelos chamados aprimoramentos, mas para melhorar a qualidade de vida das pessoas, seja com doenças como o Alzheimer, que é tão destrutiva para tantas famílias e tem um enorme impacto econômico, ou com algo como doenças cardiovasculares, com um impacto igualmente enorme na sociedade e na economia. Acho que, se no futuro houver uma maneira de usar o CRISPR para fazer mudanças genéticas capazes de proteger as pessoas em geral da suscetibilidade a esses tipos de doenças, isso deve ser considerado.  

Cura para infecções  

Em um comentário feito a pedido da MIT Technology Review Brasil, o médico Luiz Vicente Rizzo, diretor-superintendente do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, avalia que a manipulação de embriões é uma polêmica antiga, mas que ganha um novo capítulo, desta vez mais definitivo, com CRISPR. “A história mostrou que a humanidade não tem vergonha de usar as ferramentas à sua disposição, a despeito de preocupações com os resultados. O proverbial ‘eu faço isso porque eu posso’”, afirma.  

Para o especialista, um lado menos controverso da tecnologia CRISPR é o uso de seu potencial para curar infecções virais em organismos superiores. “É uma possibilidade excitante. Dado o status da pandemia e o futuro não tão brilhante que aponta para muitas outras, essa linha de pesquisa deve ser seriamente considerada e devidamente incentivada a partir de agora”, finaliza. 

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