Inteligência Artificial e Energia: impactos cruzados
Energy

Inteligência Artificial e Energia: impactos cruzados

O grande gargalo da Inteligência Artificial (IA) não é “inteligência”. É energia

Nos próximos anos não vão faltar modelos, nem startups de IA generativa, nem profissionais formados em ciência de dados. A parte de software é, por definição, infinitamente copiável: treina-se um modelo uma vez, e o mesmo código roda em qualquer lugar com o hardware adequado. O que não se copia com um Ctrl+C são gigawatts de capacidade instalada, linhas de transmissão e contratos de energia firme de longo prazo.

Mini Banner - Assine a MIT Technology Review

É esse descompasso entre a velocidade do digital e a inércia do físico que deve moldar a geopolítica da IA – e é aqui que o setor de energia deixa de ser “infraestrutura de suporte” e passa a ser variável estratégica.

O fator limitante da infraestrutura de IA

Quando se fala em gargalos da IA, o reflexo é pensar em chips de ponta e em escassez de GPUs. De fato, hoje há algumas restrições de oferta, em especial na capacidade de advanced packaging de empresas como a TSMC, AMD e NVidia. Mas, mesmo com percalços, a indústria de semicondutores está fazendo o que sempre fez: investir pesadamente em CAPEX e ampliar oferta. TSMC, por exemplo, está triplicando sua capacidade de empacotamento CoWoS entre 2023 e 2025, com planos de continuar expandindo até 2026.

Em outras palavras: quando há incentivo econômico, a indústria de hardware responde. A construção civil também não é o gargalo principal. Projetar e erguer um hyperscale data center é complexo, mas está longe de ser um “moonshot” de engenharia. Na prática, os grandes operadores replicam blueprints (prédios modulares, salas em rack, subestações dedicadas) e conseguem colocar instalações em pé em algo como dois a três anos, do projeto à operação comercial – às vezes menos, quando licenciamento e conexão à rede já estão encaminhados.

E a água? Muito se falou do consumo hídrico de data centers, especialmente em regiões sujeitas à seca. Há casos em que o uso de torres de resfriamento evaporativas pressionou bacias hidrográficas locais e gerou conflitos com comunidades. Mas, olhando em escala global, esse não tende a ser o fator limitante. Os grandes operadores vêm migrando para sistemas fechados, chillers de alta eficiência, resfriamento direto a ar e, em alguns casos, liquid cooling em circuito fechado. O desafio hídrico continua relevante em hotspots específicos, mas não dita sozinho o ritmo de expansão da IA.

O que sobra, então, como variável realmente crítica? Energia.

Segundo o relatório “Energy and AI”, da Agência Internacional de Energia (IEA), os data centers consumiram cerca de 415 TWh em 2024, o equivalente a 1,5% da eletricidade global, com crescimento médio de 12% ao ano desde 2017. Na projeção-base da própria IEA, esse consumo mais do que dobra para cerca de 945 TWh em 2030, algo próximo a 3% da eletricidade mundial, crescendo cerca de 15% ao ano — quatro vezes mais rápido que a demanda de todos os outros setores.

Essa é a média global. Só que data centers não se distribuem de forma homogênea: eles se concentram em poucos clusters. Nos Estados Unidos, por exemplo, a IEA projeta que, até o fim da década, o consumo de eletricidade para data centers deve superar o de toda a produção de alumínio, aço, cimento, químicos e outros bens intensivos em energia somados.

Ao mesmo tempo, a IEA lembra outro detalhe incômodo para quem acha que tudo se resolve “só” com investimento privado: um data center leva 2–3 anos para ficar pronto; reforçar a infraestrutura elétrica frequentemente leva de 4 a 8 anos, sem contar a construção de novas usinas, que pode facilmente superar uma década em projetos hidrelétricos ou nucleares.

Ou seja: nos próximos 3 a 5 anos, o verdadeiro gargalo da IA não será a existência de modelos, talento ou mesmo GPUs, mas a disponibilidade de energia limpa, abundante e confiável nos lugares certos.

Não é coincidência que Amazon, Microsoft, Meta e Google estejam entre os maiores compradores corporativos de energia renovável do mundo, contratando dezenas de gigawatts em PPAs para garantir o suprimento de seus data centers. Só em 2024, essas quatro empresas contrataram 11,3 GW de nova capacidade de energia limpa nos Estados Unidos, praticamente o equivalente a todo o parque de energia limpa instalado na Flórida.
Quem quiser ser protagonista em IA precisa, antes, responder a uma pergunta mais básica: consegue crescer 24/7 em energia de baixo carbono?

O papel do Brasil na expansão global da IA

Nesse tabuleiro, o Brasil entra com uma vantagem rara: sua eletricidade já é majoritariamente renovável — e em escala continental. Em 2023, aproximadamente 89% da eletricidade brasileira veio de fontes renováveis, enquanto a média global ficou em torno de 30%.

Hidrelétricas ainda respondem por boa parte da geração, mas a matriz vem se diversificando rapidamente com eólicas e solares. Em 2025, pela primeira vez, vento e sol responderam por mais de um terço da geração elétrica brasileira em determinados meses, com hidrelétricas ainda contribuindo com cerca de metade da produção total e combustíveis fósseis mantendo participação relativamente baixa.

Mais importante: ainda há espaço gigantesco para crescer. Estudos apontam que:

  • o potencial técnico de energia solar no país é de dezenas de milhares de gigawatts, muito acima do nosso consumo atual;
  • o potencial de energia eólica (onshore e offshore) chega a centenas de gigawatts; apenas o potencial eólico estimado em alguns estudos já supera em múltiplas vezes a demanda elétrica atual do país;
  • estudos da Roland Berger sugerem que o Brasil pode se tornar o maior produtor de hidrogênio verde do mundo, com potencial de faturar algo como R$ 150 bilhões por ano até 2050, boa parte em exportações;
  • o país detém cerca de 5% das reservas conhecidas de urânio e domina toda a cadeia do ciclo do combustível nuclear, o que abre espaço para uma expansão planejada da nuclear como fonte firme de baixa emissão.

Some a isso um agronegócio de classe mundial, com forte base em bioenergia (etanol, biogás, biometano, biomassa) e um parque hidrelétrico já amortizado em grande parte. O resultado é uma matriz elétrica limpa, relativamente competitiva em custo e com enorme potencial adicional.

Nesse contexto, o Brasil se torna candidato natural a abrigar parte relevante da infraestrutura global de IA — especialmente se conseguir combinar três elementos: energia limpa em escala, segurança jurídica e um projeto consistente de digitalização e inovação. O assunto foi tema central do Energy Summit 2025 e uma das principais megatendências do relatório 10 Energy Megatrends da MIT Technology Review Brasil.

A nova legislação do Redata vai nessa direção ao criar um regime especial para data centers e infraestrutura digital, oferecendo benefícios tributários em troca de compromissos de investimento em P&D, eficiência energética, uso de energia renovável e adensamento da cadeia produtiva local. Bem desenhado (e bem regulado), o Redata pode evitar que o Brasil vire apenas um “estacionamento de servidores”, estimulando contrapartidas em inovação, qualificação profissional e consumo de conteúdo e serviços digitais produzidos aqui.

Projetos como o Rio AI City, em parceria com grandes players de tecnologia e energia, tentam justamente posicionar o Rio de Janeiro — a cidade brasileira mais conectada com o mundo — como um polo global de IA, combinando data centers, pesquisa, empresas e talentos em um mesmo ecossistema urbano.

No Nordeste, iniciativas como o data center do TikTok no Ceará, ancorado no Porto do Pecém e conectado por cabos submarinos transatlânticos, reforçam a vocação da região de se tornar um hub de energia renovável (eólica onshore e offshore, solar, hidrogênio verde) acoplado a infraestrutura digital de classe mundial.

Nada disso garante, por si só, uma “posição cativa” do Brasil no mapa da IA. Mas indica que há uma janela estratégica: o mundo está ávido por energia limpa para data centers; o Brasil é um dos poucos países que conseguem oferecer volume, qualidade e competitividade de preço. Se formos capazes de combinar essa vantagem com uma agenda clara de inovação, qualificação de mão de obra e segurança regulatória, podemos deixar de ser apenas fornecedores de moléculas e elétrons para nos tornar provedores de inteligência – em bits, algoritmos e novos negócios.

O papel da IA na expansão da disponibilidade de energia

Se, por um lado, a IA pressiona a demanda por eletricidade, por outro ela também é uma das principais ferramentas para usar melhor a energia que já temos e acelerar a expansão da oferta.

A própria IEA estima que, aplicadas em larga escala, as soluções de IA já existentes podem gerar economias de energia de 10% o consumo energético global na indústria até 2040, números equivalentes ao consumo total de um país como o México e cerca de 300 TWh em economias de eletricidade em edifícios — praticamente toda a geração anual de países como Austrália e Nova Zelândia somados.

Traduzindo isso para o setor elétrico, dá para organizar os impactos em quatro grandes blocos:

1. Planejamento e operação do sistema

A transformação energética está tornando os sistemas elétricos mais complexos: mais renováveis variáveis (vento, sol), mais recursos distribuídos, mais intermitência. IA entra para ajudar a orquestrar esse quebra-cabeça:

  • Integração hídrico–eólico–solar

Modelos de machine learning permitem prever com mais precisão a produção de parques eólicos e solares, combinando dados meteorológicos de alta resolução com histórico de operação. Quando isso é casado com a lógica de operação de reservatórios hidrelétricos, é possível “guardar água” em momentos de muito vento e sol e usar as hidrelétricas como baterias naturais nos períodos de escassez.

  • Planejamento de expansão

Algoritmos de otimização conseguem simular milhares de cenários de expansão (novas usinas, linhas, armazenamento, resposta da demanda) sob diferentes hipóteses de preços, clima e crescimento econômico. Isso reduz o risco de investir em ativos errados — ou no lugar errado — em sistemas que vão mudar muito rápido.

  • Programação de manutenção e despacho 24/7

Com dados em tempo real de sensores, SCADA e medidores inteligentes, modelos preditivos identificam padrões que antecedem falhas em turbinas, transformadores ou equipamentos eletrônicos de potência. Isso permite planejar manutenção em janelas menos críticas e reduzir paradas imprevistas que custam caro em termos de confiabilidade e de uso ineficiente da rede.

2. Transmissão e Distribuição (T&D)

Na malha de T&D, IA já começa a alterar tanto a forma como se opera quanto o que se considera possível extrair da infraestrutura existente:

  • Manutenção preditiva de ativos

Câmeras, sensores acústicos e drones inspecionam automaticamente linhas, torres, isoladores e subestações. Modelos de visão computacional encontram corrosão, rachaduras ou vegetação invasiva antes que gerem uma falha. Isso reduz interrupções e estende a vida útil dos ativos.

  • Forecast de demanda e fluxo de potência em tempo real

Previsões mais precisas em horizontes de minutos a dias permitem operar o sistema mais perto de seu limite seguro, reduzindo a necessidade de manter margens de folga muito conservadoras.

  • Detecção de perdas e fraudes

Anomalias em curvas de carga, cruzadas com dados de rede e de consumo histórico, ajudam a identificar ligações clandestinas e falhas técnicas de forma muito mais rápida do que inspeções aleatórias.

  • “Liberar” capacidade de transmissão via IA

A IEA estima que o uso combinado de sensores, IA e dynamic line rating pode liberar até 175 GW de capacidade adicional em linhas de transmissão já existentes, sem construir um único quilômetro novo — mais do que o aumento de carga de data centers até 2030 no cenário base.

Em um contexto em que construir novas linhas pode levar de 4 a 8 anos, essa “capacidade invisível” desbloqueada por software é tão estratégica quanto uma nova obra.

3. Comercial, mercado e consumo

No lado do consumidor (e dos mercados atacadistas), IA abre espaço para um uso de energia mais inteligente e responsivo:

  • Tarifação dinâmica e resposta da demanda

Com smart meters e modelos que entendem o comportamento de consumo, distribuidoras e comercializadoras podem oferecer tarifas variáveis por horário, estimulando consumidores a deslocar parte do uso para momentos de maior disponibilidade de renováveis.

  • Assistentes energéticos multimodais

Chatbots e agentes de voz/visão ajudam residências e empresas a entender sua fatura de energia, simular investimentos (painéis solares, baterias, retrofit) e ajustar equipamentos em tempo real para reduzir desperdícios – algo particularmente relevante para pequenos e médios consumidores, que hoje têm pouco suporte técnico.

  • Gestão de grandes consumidores

Em indústrias eletrointensivas, sistemas de IA otimizam o uso de fornos, motores, sistemas de refrigeração e logística interna de forma a reduzir picos de demanda e aproveitar melhor os horários de energia mais barata ou mais limpa.

4. Aplicações em segmentos adjacentes

Fora do “núcleo duro” do setor elétrico, a IA também viabiliza ou acelera tendências que aliviam a pressão sobre o sistema:

  • Virtual Power Plants (VPPs)

A agregação inteligente de milhares de pequenos recursos (rooftop solar, baterias residenciais, veículos elétricos, cargas controláveis) em usinas virtuais depende de algoritmos robustos de previsão, otimização e controle distribuído. IA é o cérebro que torna isso operacional.

  • Mobilidade elétrica e híbrida

Algoritmos de roteamento, smart charging e gestão de frotas reduzem o impacto da eletrificação veicular nos horários de ponta e sincronizam recargas com a disponibilidade de renováveis.

  • Smart cities e armazenamento inteligente

Em cidades, IA ajuda a coordenar iluminação pública, HVAC de edifícios, semáforos e transportes de forma a minimizar o consumo energético por unidade de serviço prestado. No armazenamento, algoritmos aprendem padrões de preço e de demanda para decidir quando carregar ou descarregar baterias, reduzindo custos e emissões.

Em suma, a mesma tecnologia que aumenta a conta de luz dos data centers pode, se bem empregada, reduzir o custo sistêmico da tranformação energética. A conta líquida – mais consumo de um lado, mais eficiência do outro – ainda é objeto de estudo, mas a IEA estima que, em 2035, os ganhos de eficiência possibilitados pela IA podem ser equivalentes a cerca de 5% das emissões energéticas globais, enquanto as emissões associadas aos data centers permanecem abaixo de 1,5% das emissões do setor de energia.

Um pacto entre elétrons e algoritmos

A mensagem central é simples, ainda que desconfortável: não existe IA sem energia, e a forma como produzimos, transportamos e usamos essa energia vai determinar quem colhe os frutos dessa revolução tecnológica.

Países com energia cara, suja ou pouco confiável tendem a se tornar consumidores de serviços de IA hospedados em outros lugares (uma questão tão complexa quanto a geopolítica e a soberania de cada país). Países com energia limpa, abundante e bem gerida podem virar plataformas de IA, atraindo data centers, empresas, talentos e cadeias produtivas inteiras em torno desse novo “núcleo computacional” da economia.

O Brasil está, talvez pela primeira vez em décadas, numa posição em que a sua vantagem estrutural não é apenas um ativo exportável (minério, soja, petróleo), mas um pré-requisito para a infraestrutura cognitiva do século XXI. Isso não significa que o jogo está ganho: é preciso combinar política energética, política industrial e política de inovação em uma mesma agenda — integrando instrumentos como o Redata, a regulação de eólicas offshore, hidrogênio verde, P&D regulado e incentivos fiscais para projetos de alta intensidade tecnológica.

Do outro lado, o setor de energia precisa abraçar a IA não apenas como ferramenta de marketing, mas como camada estrutural da sua operação – do planejamento à relação com o consumidor. Se não o fizer, ficará preso em um modelo de negócios analógico tentando alimentar um mundo digital.

IA e energia entraram em uma relação de interdependência profunda. Quem entender isso primeiro — e agir — não vai apenas treinar modelos mais rápidos: vai redesenhar sua posição na economia global dos próximos 20 anos.

Hudson Mendonça é CEO do Energy Summit e VP de Energia e Sustentabilidade da MIT Technology Review Brasil. Engenheiro e economista pela UFRJ, com doutorado em Gestão e Inovação pela PUC-Rio, atua há mais de 15 anos promovendo soluções sustentáveis, inovação e impacto positivo. Lidera iniciativas em transição energética, cidades inteligentes e economia circular, conectando empresas, governo e academia para construir um futuro mais inclusivo e resiliente.

Último vídeo

Nossos tópicos